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quarta-feira, 13 de agosto de 2014

A Fé se Manifesta em Obras



O autor da Carta aos Hebreus aparentemente define fé como: o firme fundamento das coisas que se esperam e a prova das que não se veem (Hb 11. 1 ARC), ou como traduz a ARA: ora a fé é a certeza das coisas que não se veem, e a convicção de fatos que se não veem (Hb 11. 1 ARA). Mas na medida em que se avança na leitura do texto, torna-se mais e mais perceptível a ideia de que a intenção do autor não foi a de definir fé, mas sim de indicar com a mesma age.

Parto deste princípio porque creio que para falar de interação entre fé e obras, seja necessário um sólida conceituação do que vem a ser a fé, do papel das obras na vida cristã, etc... . O assunto é mais do que atual pela questão apologética (visto que é necessária a remoção da suposta contradição entre Tiago e Paulo), sim. Mas creio que o pelagianismo, esta heresia que tem cercado a Igreja Evangélica Brasileira, seja um mal ainda maior.

FÉ NA BÍBLIA

Não existe no Antigo Testamento uma palavra cujo conceito se aproxima do de fé. A palavra mais próxima, אֱמוּנָתֹ֥ו (emunah [fidelidade]),é igualmente usada para confiança e segurança despertadas pela fidelidade divina quanto ao cumprimento de suas promessas. É no Novo Testamento que ideia ganha maior corpo, por meio do termo πιστις (pistis), cujo emprego pode englobar:

  1. Uma firme persuasão, quanto a uma verdade, ou o conteúdo de alguma afirmativa. É o caso, por exemplo de Paulo, que tinha convicção de que após sua morte receberia um novo corpo (II Co 5. 7, 8). 
  2. Boa fé, fidelidade, sinceridade. Manter a boa fé requer firme convicção a respeito da fidelidade divina (I Tm 1. 19; 2. 7; II Tm 2. 22). Fidelidade é fruto do Espírito (Gl 5. 22; Ap 2. 19; 13. 10). 
  3. Um modo de se apropriar aquilo Deus em Cristo reservou ao homem. É neste sentido, creio eu, que a fé é entendida pelo autor da carta aos Hebreus, quando este afirma: a fé é um modo de possuir, desde agora o que se espera, um meio de conhecer realidades que não se veem (Hb 11. 1 TEB). 
  4. Demonstrada acima de tudo na oração com base na vontade de Deus, que como tal, é feita sem duvidar (Mt 17. 20; 21.21; Mc 11. 22). 
  5. A confiança que os enfermos depositaram em Cristo (Mt 8. 10; 9. 2, 22, 29; 15. 28; Mc 10. 52). 
  6. As doutrinas do Evangelho, que serem fonte de fé (Rm 10. 17), são confundidas com a própria fé. Assim, quando se dizia que os sacerdotes, ou os gentios obedeciam a fé, quer se dizer que obedeciam ao Evangelho (At 6. 7; Rm 1. 5). A abertura da fé aos gentios equivale à pregação (At 14. 27). 
  7. A fé salvadora, ou salvífica, conforme encontrada nos textos de Paulo (Rm 3. 22, 25 - 28, 30, 31). Por meio da fé do Evangelho é imputada ao homem a justiça de Deus (Rm 1. 17; 5. 1, 2; 9. 30, 32; 10. 4). 
Antes de prosseguir com o estudo em apreço, pretendo deixar claro aqui minha anuência às sábias palavras de Ed René Kivitz, quando este afirma que ao contrário do que se pensa, a fé não é algo que leva o ser humano a mexer com Deus, mas que move o ser humano em direção a algo. Em outras palavra, a fé conduz o homem à prática, à ação. Isto é algo que aparece tanto em Paulo quanto em Tiago. 

Pela fé Abel ofereceu melhor sacrifício do que Caim. Mas quando se observa o contexto de Gênesis, por exemplo, torna-se perceptível que a aceitação de um e rejeição de outro estava ligado ao que eles praticavam (Gn 4. 6, 7). Esta interpretação aqui oferecida não se dá em um vácuo hermenêutico, pelo contrário, é confirmada pela própria Bíblia quando João afirma: não como Caim, que era do maligno, e matou a seu irmão. E por que causa o matou? Porque as suas obras eram más e as de seu irmão justas (I Jo 3. 12 ACF). 

Em outras palavras o sacrifício mais excelente de Abel começou na qualidade da oferta, mas com a vida do ofertante. O autor sacro aos Hebreus colocou isto de uma forma diferente, ao afirmar que pela fé os antigos alcançaram testemunho (Hb 11. 2 ACF). O testemunho de Abel foi seu maior ato de fé, e o processo de exegese feito aqui demonstra que nele se evidencia a profunda conexão entre fé e ação. Esta é a essência da fé bíblica. Agora convém falar das obras. 

OBRAS NA PERSPECTIVA BÍBLICA

O que a Bíblia diz a respeito das boas obras? Em primeiríssimo lugar, as Escrituras foram legadas ao povo de Deus com a estrita finalidade de instruir e educar o homem de Deus em toda a boa obra (II Tm 3. 16, 17). Em segundo lugar, mesmo afirmando que a salvação é exclusivamente pela graça de Deus, e independente de obras (Ef 2. 8, 9), a mesma Bíblia diz no mesmo contexto que os crentes, ou salvos, foram criados em Cristo Jesus para as boas que Deus já antes preparara para que nela andássemos (Ef 2. 10 Bíblia de Jerusalém). Aqui se faz necessária uma explicação. 

Quando Paulo afirma a salvação pela graça independente de obras de justiça, sejam quais forem (Ef 2. 8, 9), há que se atentar para o contexto, que descreve o homem sem Deus como morto em seus delitos e pecados, vivendo de acordo com o espírito que opera nos filhos da desobediência, satisfazendo as vontades da carne e o seus impulsos (Ef 2. 1 - 4). Faço aqui uma pausa para lembrar que a carne não pode obedecer a lei de Deus (Rm 8. 5 - 8). Sim, os que estão na carne não podem agradar a Deus (Rm 8. 8 Bíblia de Jerusalém). 

Para que o crente pratique as boas obras descritas no texto, necessário se faz com que Deus faça dele uma nova criatura em Cristo (ποιημα κτισθεντες εν χριστω [poieema kthistentes en Christon]). A habilitação do homem para fazer as boas obras é em si, uma obra de Deus. A teologia chama esta obra de regeneração. Sei que até agora esteou transitando dentro do pensamento paulino, mas o que Tiago tem a dizer a este respeito? 

Em primeiro lugar, conforme visto neste espaço, Tiago sabe que o homem natural é atraído como um animal por seus desejos, de forma a vir a pecar (ver gerados pela palavra da verdade aqui), e afirma que o homem tem de ser praticante da palavra (ver a parte em que falo da religião pura e imaculada aqui); mas note, que antes desta célebre escritor falar da prática da Palavra e da verdadeira religião ele afirma: Por sua vontade, ele nos gerou pela palavra da verdade, para que fôssemos como que as primícias dentre as suas criaturas (Tg 1. 18 Bíblia de Jerusalém). 

Em outras palavras, em Cristo, o homem foi gerado pela Palavra da Verdade para para praticar a Palavra (Tg 1. 18 - 25). Este contexto tem de ser levado em conta pelo intérprete bíblico, a fim de que toda dúvida seja jogada por terra. Querendo ou não os teólogos liberais, há mais semelhança entre Paulo e Tiago do que imagina toda vã teologia acadêmica. 

Mas somente as Escrituras habilitam o crente a praticar as boas obras requeridas por Deus. Primeiro, por serem a fonte de regeneração (Tg 1. 18; I Pe 1. 22 - 23), segundo por indicarem a glória de Deus como propósito fundamental para a prática das mesmas (Mt 5. 16), e por último por apontarem que somente por Deus e por Cristo é que tais podem ser praticadas. 

Esta verdade aparece já no Antigo Testamento quando Isaías afirma: Iahweh tu nos asseguras a paz; na verdade todas as nossas obras tu as realizas por nós (Is 26. 12 Bíblia de Jerusalém). Jesus mesmo disse aos seus discípulos: permanecei em mim, e eu em vós. Como o ramo não pode dar fruto por si mesmo, se não permanecer na videira, assim também vós se não permanecerdes em mim. Eu sou a videira, e vós os ramos. Aquele que permanece em mim e eu nele produz muito fruto; porque sem mim, nada podeis fazer (Jo 15. 4, 5 Bíblia de Jerusalém). 

O mesmo pode ser dito de Paulo, que preocupado com o progresso dos irmãos de Filipo desejou aos mesmos que que o amor deles crescessem mais e mais. Como? Em conhecimento e em sensibilidade, a fim de que os mesmos pudessem discernir o que é importante e fossem puros e irreprováveis no dia de Cristo, na maturidade do fruto da justiça, que vem por Jesus Cristo e para a glória e o louvor de Deus (Fp 1. 9 - 11 Bíblia de Jerusalém). Mas Paulo fez esta oração sabendo que o querer e o efetuar estão em Deus (Fp 2. 13). 

Não há em Tiago o espaço para uma oposição entre fé e obras e nem para uma especulação de um suposta salvação pelas obras. Afirmo isto por uma simples razão: a essência da fé é um desesperar de si mesmo, e um depositar da confiança humana no agir de Deus. Esta mensagem aparece quanto o autor faz menção aos exemplo de fé e obras do Antigo Testamento, a saber: Abraão e Raabe. Ambos demonstraram confiança no Deus de Israel e se apoiaram na mesma para agir como agiram.

Minha conclusão a respeito deste assunto é que a Bíblia em momento algum condena as boas obras. Pelo contrário incentiva a prática das mesmas, desde que com a motivação correta, a glória de Deus e de Cristo (Mt 5. 16), e que jamais as mesma sejam usadas como uma forma de marketing pessoal. Isto se dá quando a motivação para as boas obras é ser visto pelos homens.

Um outro problema abordado nas Escrituras é a confiança nas boas obras como se estas fossem um tipo de crédito entre o homem e Deus. A matriz cultural deste pensamento é a justiça diretiva do judaísmo pré cristão. Uma justiça, cuja base é o desempenho do homem no cumprimento da lei, como se cada mandamento cumprido fosse uma moeda de negociação entre o homem e Deus. Em um primeiro momento Davi parece acreditar neste tipo de Justiça (Sl 18. 18 - 27), mas somente até experimentar o poder desolador do pecado e orar pedindo compadece-te de mim ó Senhor (Sl 51). Para mais sobre o assunto, ver aqui.

FÉ E OBRAS NO CONTEXTO DA CARTA DE TIAGO

Antes de um exame a respeito da vida destes dois ícones, gostaria de ressaltar o contexto em que Tiago fala, que por sua vez segue a seguinte ordem:
  1. Geração pela Palavra da Verdade (Tg 1. 16 - 18)
  2. Chamado à prática da Palavra de Deus (Tg 1. 19 - 25)
  3. Indicação da religião pura (Tg 1. 26, 27)
  4. Condenação à fé em Cristo, quando supostamente exercida em acepção de pessoas (Tg 2. 1 - 13). 

Gostaria de chamar a atenção para os versos finais em que o irmão do Senhor pede: assim falai, e assim procedei, como devendo ser julgados pela lei da liberdade. Porque o juízo será sem misericórdia sobre aquele que não fez misericórdia; e a misericórdia triunfa do juízo (Tg 2. 12, 13 ACF). É esta fala que antecede a pergunta retórica a respeito da relação entre fé e caridade e obras.

A caridade vazia de obras é nula, não é sem razão que João pede: não amemos de palavra, nem de língua, mas por obra e em verdade (I Jo 3. 18). Nos escritos paulinos, fé, esperança e amor constituem uma tríade que vei a ser conhecida como a das virtudes teologais (Rm 5. 1 - 5; I Co 13. 13), e o fator mais revelador de todos, a afirmação de que a fé opera por meio do amor. 

Porque nós pelo Espírito da fé aguardamos a esperança da justiça. Porque em Jesus Cristo nem a circuncisão nem a incircuncisão tem valor algum; mas sim a fé que opera pelo amor (Gl 5. 5, 6 ACF).  Fé e amor operam de modo conjunto, daí que mais que normal que para exemplificar a operosidade da fé, Tiago tenha recorrido ao exemplo de caridade conforme se vê em Tg 2. 14 - 17. 

ABRAÃO E RAABE, EXEMPLOS DE FÉ E OBRAS

Assim também a fé, se não tiver obras está completamente morta. De fato alguém poderá objetar-lhe tu tens a fé e eu tenho as obras. Mostra-me a tua fé sem as obras, e eu te mostrarei a minha fé pelas obras (Tg 2. 17, 18 Bíblia de Jerusalém). O que Tiago ensina neste texto? Que não existe fé separada de obras. Este ensino pode ser observado na Carta aos Hebreus, especificamente na lista dos heróis da fé, uma vez que a cada vez que o autor diz: pela fé, vem um verbo denotado a ação dos mesmos.

Tiago a fim de demonstrar esta verdade de forma mais prática e concisa recorre ao exemplo de Abraão e Raabe. Vou começar com o exemplo do patriarca de Israel e pai na fé dos cristãos. Não foi pelas obras que nosso pai Abraão foi justificado ao oferecer seu filho Isaque sobre o altar? Já vês que a fé concorreu para as suas obras e assim a fé se realizou plenamente. E assim cumpriu a Escritura que diz: Abraão creu em Deus e isto lhe foi imputado como justiça (Tg 2. 21 - 23 Bíblia de Jerusalém). Algumas observações precisam ser feitas aqui:
  1. Em primeiro lugar a imputação de justiça a Abraão se deu quando este ainda não tinha filho algum, e ao ouvir do próprio Deus que teria uma descendência tão numerosa quanto as estrelas do céu, creu (Gn 15. 1 - 6). 
  2. Diante do exposto seria um problema se Tiago afirmasse que a oferta, ou apresentação de Isaque sobre o altar foi o motivo da justificação de Abraão, mas não é isto que se lê no texto. Tiago na verdade está fazendo duas afirmativas bem significativas. 
  3. Que a fé (já demonstrada na anuência ao projeto de Deus para a sua vida) de Abraão atingiu sua plenitude quando este ofereceu (na verdade o verbo ανενεγκας [anenégkas] é melhor traduzido por apresentar, o que ressalta a obediência do patriarca) Isaque sobre o altar. 
  4. Que este ato foi o cumprimento da declaração escriturística de que o patriarca crera na palavra de Deus e isto lhe foi imputado como justiça. 
  5. Há uma sinergia entre fé e obras, que permite que a fé seja consumada. 
  6. A obra que Tiago toma como exemplo, é em si, um ato de fé da parte do patriarca, que tinha despedido seu filho Ismael e tinha exclusivamente em Deus a esperança do cumprimento da promessa. 
  7. O que Tiago pretende demonstrar aqui é que fé e obras andam juntas. 
Esta é a visão de fé que Tiago tem. Agora convém analisar o exemplo de Raabe. O que tenho a dizer a respeito dela é muito simples: as obras da fé que esta mulher demonstrou são fruto de uma consciência da superioridade do Deus de Israel. Tiago indaga: Raabe, a prostituta, não foi justificada pelas obras quando acolheu os mensageiros e os fez voltar por outro caminho? Com efeito assim como o corpo sem o sopro de vida é morto, assim também é morta a fé sem obras (Tg 2. 25, 26 Bíblia de Jerusalém).

No lugar de entender precipitadamente que as obras de uma meretriz pagã foram a fonte de sua justificação, ou que um judeu do século primeiro entenderia assim, prefiro a compreensão de que de nada adiantaria àquela mulher sentir o mesmo tremor que os demais cidadãos de Jericó sentiram, e ter a mesma atitude deles. Este tipo de fé é similar ao corpo sem fôlego de vida, algo morto em essência.

Em Cristo, Pr Marcelo Medeiros

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