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sexta-feira, 26 de junho de 2020

Crise Ética, ou Eticorragia



O título do presente post remete-nos a um capítulo de um dos livros mais despretensiosos, de autoria de um dos escritores mais desprovido de quaisquer pretensões, que tenha visto ao longo da vida. O primeiro livro dele foi o Icabode - da mente de Cristo à secularização de mente - onde o autor fala a respeito de como o processo de modernização alterou a cosmovisão e mentalidade cristãs. Ao prefaciar o Excelentíssimos Senhores o autor afirmou que não contava com o sucesso do primeiro livro, por conta do volume de páginas do mesmo.

Na perspectiva do autor em apreço e na minha (também sou autor), livros volumosos desestimulam uma geração que se vê diante da possibilidade de uma gama volumosa de informações, bem mais fáceis de serem digeridas do que a leitura de livros críticos e volumosos. Mas o livro teve lá a sua acolhida e diante de tal a Ultimato, resolveu publicar mais um título do referido autor.

Ao que me parece Excelentíssimos Senhores é uma apanhado de artigos de autoria do Rúbem Amorese para a revista Ultimato. Alguns destes são um retorno às temáticas já tratadas no livro Icabode, sendo que de forma resumida. Eticorragia é o termo que Amorese emprega para o declínio ético na sociedade moderna em decorrência de uma crise de reflexão, de intelectualidade.

Aquilo que chamamos de moral é um conjunto de costumes e práticas, que visam tornar a vida em sociedade viável. Ela nos é imposta de forma coercitiva? Os que respondem afirmativamente o fazem acertadamente, primando por aqueles aspectos em que a nossa moral vai de encontro com os nossos desejos. Mas a moral entra em nossa mente por meio de histórias que nossos pais, mestres, padres, pastores nos contam, cujas lições podem ser aceitas, ou rejeitadas parcialmente, ou na íntegra.

Já a Ética é a reflexão que o dia-a-dia impõe ao ser humano. Ser Ético é ser capaz de refletir e dar respostas aos dilemas que a vida propõe. É neste contexto que surge a discussão a respeito de temas como aborto, clonagem, meio-ambiente, economia, saúde, afinal, por que o Estado deve desenvolver políticas públicas? Por que o estado deve dar o máximo de liberdade ao indivíduo? A questão aqui não é meramente econômica, conforme se possa pensar. Não! A Economia hoje é vista como uma ciência cuja finalidade é o domínio do funcionamento dos mecanismos de mercado. (Não quero dizer que todos os economistas a vejam assim, mas que esta é a percepção generalizante, e errônea).

Os primeiros economistas, dentre os quais Adam Smith e Karl Marx não eram estes técnicos cujo pensamento é voltado ao funcionamento do mercado financeiro. Eles também eram Filósofos Morais, ou moralistas. Este é outro termo que se perdeu ao longo do tempo. Um moralista hoje é visto como uma pessoa que busca impor sua moral aos demais. Nos idos dos séculos XVIII e XIX este termo era aplicado à pessoas como Blaise Pascal que analisavam as entranhas da alma humana. Mas é hora de voltar à Ética.

Amorese identifica uma crise Ética. O primeiro exemplo dele é o caso do antigo programa Você Decide, cujo título o autor vê como sugestivo. A sugestão do nome dá a entender em uma época marcada por uma subjetividade extrema, o homem possa passar por cima de todo e qualquer legado moral e fazer escolhas tendo como norte apenas seus desejos e sua vontade. Preste atenção porque discussões à parte este é o grande legado do autor para a discussão atual.

Para C. S. Lewis um erro recorrente dos moralistas na atualidade é a crença de que tal como ocorre em uma loja, mercado, ou shopping onde o sujeito (de fora) escolhe a peça, ou o produto que lhe agrada, tem - se a impressão de que na moral algo similar possa ocorrer. Mas ninguém se coloca em um vácuo moral para poder escolher uma moral. Já estamos em uma moralidade e é a partir da moralidade que recebemos através das histórias que nos foram contadas que escolhemos o que tem de permanecer e o que podemos descartar.

Em Cristianismo Puro e Simples Lewis fala que todos tem a noção do que é certo e do que é errado e que diante da transgressão da regra, ou norma, ninguém questiona, ou questionava a norma em si, mas todos procuram justificar porque no caso deles esta não se aplica, ou porque podem ser uma exceção. Pelo menos na época dele era assim. O chamado você decide (a partir de sua subjetividade) não existe. Nossa decisão não faz com que o errado se torne errado, porque nos o escolhemos. e é aí que mais uma vez a fala de Amorese é primorosa.

O episódio ao qual o autor se refere é o alguém que acha uma mala com uma quantia exorbitante de dinheiro e o apresentador joga para o público a decisão a respeito do devolver, ou não a quantia. A decisão majoritária do público é pela não devolução. Ali fica desenhada a mentalidade de uma considerável parcela da nossa população. Ao rever o livro não consegui identificar as possíveis razões que as pessoas tenham apresentado para a exceção da regra.

Um outro exemplo, ao qual ele frequentemente apela para demonstrar a crise ética é a questão do aborto, digo da defesa apaixonada dos defensores da causa. Já pontuei aqui que não sou favorável à prática do aborto e pontuei a necessidade de desumanização do feto a fim de que a ação possa ser tomada sem muitos dilemas.

Do ponto de vista Teológico e Filosófico a decisão não é nada fácil. Jó desejou ter sido abortado quando se viu diante da perda de todos os seus bens e o Pregador afirma em Eclesiastes que é melhor ser um aborto do que viver e não gozar o bem nesta terra. Em ambos os casos a vida se mensura pelo bem que se vive.

A moral cristã, como toda moral, vê as coisas a partir do sexo pré conjugal, ou do mau uso de métodos contraceptivos, ou até da falta de planejamento familiar. Do ponto de vista ético e reflexivo a questão não é nada fácil de se resolver. Uma mãe que tem de abortar  e passa por seus dilemas interiores vive a realidade da crise ética. Todavia crise aqui nada tem a ver com o modo como Amorese concebe. Aqui a crise é um processo que leva à decisão. O uso que o autor faz de crise é de uma conjuntura difícil sob uma dada perspectiva (que no caso do presente post é a Ética).

A crise no sentido do autor dá-se por conta de uma cultura hedonista, que privilegia o prazer em detrimento de qualquer forma de sofrimento. É este tipo de percepção que faz com que qualquer decisão a ser tomada seja em prol da facilidade. Se queremos emagrecer, não se faz necessária a disciplina alimentar acompanhada de exercícios. Queremos conhecimento, não é necessário estudo e leitura, bastam alguns cliques no doutor Google e a informação está toda pronta ali.

Tanto o emagrecimento saudável quanto o Estudo demandam disciplina. em ambos ocorre algo que C. S. Lewis compara a uma caminhada no deserto escaldante e ao momento em que as areias quentes entram na sola do pé. Toda caminhada proporciona seu prazer, mas junto do prazer vem os inconvenientes. A cultura atual não suporta mais isto.

Em áureas épocas o enriquecimento era fruto da disciplina em trabalhar aliada à frugalidade e a ascese de bens mundanos. Foi esta a análise que Weber fez a respeito da contribuição do puritanismo americano para fomentação do capitalismo. Dizem os comentaristas que ele igualmente previu o enfraquecimento da religião em razão da equação riqueza, busca por prazeres.

Mas o protestantismo que produz a Ética do Trabalho nos países europeus e na América, não desembarcou aqui. Aqui é a terra que tudo produz, tudo dá, o paraíso na terra, o lugar em que o esforço é dispensável. Não estou dizendo com isto que acredito no discurso da meritocracia, mas que igualmente desacredito da ideia de que as coisas caiam do alto aqui, no Brasil, de que todo sejam potenciais ganhadores da loteria. 


Somos herdeiros de uma ética frágil, que de alguma forma permite a luta contra o aborto, e a total indiferença ao número de crianças abandonadas. Pior, não se desenvolve sequer um trabalho robusto, e socialmente relevante de apoio às mães que passam por uma situação concreta de perigo. Voltando ao autor, em apreço, me pergunto quais seriam as reações de Rúbem Amorese, diante das publicações cristãs em rede social?


Ao que parece quando achamos uma carteira, ou alguma coisa de valor, que pertença a outrem, e não devolvemos cometemos crime de apropriação indébita, um ilícito já presente no código penal. No caso do programa ocorreu uma anuência para com um crime. Mas o problema é de natureza criminal somente? Óbvio que não! Mas algo similar acontece hoje no debate a respeito das Fakenews. 

Não houve a criminalização de ilícitos cometidos na internet, e este tem sido o principal argumento no qual os defensores do atual governo se apegam para justificar as ações daquilo que tem sido chamado de milícia digital. Os crimes de injúria, calúnia e difamação já são previstos no código penal. Mas quando se volta à proposta do autor é possível uma percepção maior da temática. 

Ela não pode ser vista unicamente a partir do ponto de vista técnico, no caso o do Direito. Ações políticas precisam ser vistas do ponto mais plural e multidisciplinar possível. No Campo da Moral, as considerações mais viáveis são as da Filosofia, e por que não da Teologia? Algo pode não ser crime, mas ser imoral (algumas leis o são, outras além de imorais ainda são injustas). Fakenews não é crime tipificado no código penal, mas é moral? Lógico que não! É imoral em excesso. 

Agora entra a minha percepção pessoal, particular. O senso ético e moral antecedem a criação de leis. A despeito de alguns dicionários associarem a religião à moral (algo que já aparece em August Comte), acredito na existência de algo chamado Tao, uma espécie de fio condutor moral que guia as mais variadas formulações morais. 

Lewis assume o posicionamento de que este Tao antecede ao próprio cristianismo. Mas isto nos interessa? Sim, porque tanto crentes quanto não crentes respondem a uma moral, ou uma espécie de apelo moral. Que apelo é este? Falar a verdade de coração, não difamar, não espalhar notícias falsas, ser solidário. 

Para Caio Fábio o Evangelho não é Ético e menos ainda moral. Ele desenvolve a ideia no livro Sem Barganhas com Deus. Ele dá como exemplo as escolhas divinas, desde um Abrão que não tinha lá aqueles amores pela verdade até um Judas (que sabidamente era o diabo, além das mais variadas falhas de caráter). Mas o próprio Caio reconhece que existem consequências éticas que o Evangelho traz. 

Jesus resume a Ética da lei e dos profetas nos mandamentos de amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo (Mt 22. 38, 39), e a consequência do amar a Deus e ao próximo é traduzida na regra de ouro: tudo o que vocês querem que os outros façam a vocês, façam também vocês a eles; porque esta é a Lei e os Profetas (Mt 7. 12). 

Sob a ótica do Evangelho o exercício ético consiste em se colocar no lugar do outro e uma vez colocado no lugar do outro perguntar: como gostaria que agissem comigo se tivesse no lugar de quem indo para a Igreja é assaltado, espancado, ou perde a mala de dinheiro, ou sendo uma adolescente, engravidou? É este exercício que a Ética do Evangelho nos convida. 

De igual modo o imperativo categórico com o seu age de tal forma que a tua ação se torne uma máxima universal. Em que consiste o Imperativo Categórico? Num exercício de imaginação. Qual? Este: o modo como trato uma pessoa que precisa de minha ajuda, a adolescente que engravidou, ou o sujeito que perdeu uma carteira, ou algum outro bem, pode ser universalizado?

Imaginem uma sociedade em que todos possam espalhar mentiras a respeito das outras, levar os pertences dos outros, ser indiferentes uns para com os outros, uma sociedade em que não existam bons samaritanos, ou parteiras que descumpram as ordens e os projetos eugênicos do soberano. Imaginou? 

Marcelo Medeiros. 

sábado, 13 de junho de 2020

Um protesto tipicamente protestante



Há alguns anos atrás comecei a acompanhar pela TV o programa do Pastor Antônio Carlos Costa. Neste o referido ministro presbiteriano fazia constantes exposições de textos bíblicos, começando com a Carta aos Romanos, seguindo pela confissão de Fé de Westminster, ao Evangelho de Marcos. A imagem que ficou foi a de expositor bíblico e defensor da fé protestante. 

Descobri posteriormente que este é doutor em Teologia Sistemática com especialização em Martin Lloydd - Jones. Em Antônio Carlos Costa a ortodoxia fez seu encontro com a ortopraxia, em outras palavras pensamento correto e prática correta se encontram. Simples assim. A ONG rio de paz é um marco na aplicação de ministérios de misericórdia (termo empregado por Tim Keller, um dos mais atuais e influentes nomes da proposta). Tanto que um dos seus livros é o Convulsão Protestante, que narra a Teologia e prática cristãs se expressando em ações sociais. 

Este pastor fez protestos (ver aqui) contra o alto índice de policiais mortos no Rio de Janeiro em 2018. Anterior a este ocorreu um em 2014 (ver aqui). Outras ações poderiam se alistadas aqui para apontar que na luta pela justiça não há lado, que não o da justiça, cuja realização se torna inviável sem o elemento da paz. Esta explicação seria inteiramente desnecessária não fosse a amnésia histórica da qual nosso povo tem sofrido. É neste ambiente que se fortalece cada vez mais o cultivo de guerra cultural. 

O momento atual lembra muito bem a narrativa de George Orwell (1984), onde a população estava em contante guerra, ora com a Eurásia, ora com a Lestásia. O inimigo era criação do governo para manter o povo em constante distração, para manter e justificar o Culto ao Grande Irmão. O ambiente atual do Brasil é similar. 

Foi criado um inimigo: o Comunismo. Um conceito que foi simplificado, e à semelhança do que faz o ministério da Verdade no romance de George Orwell, a palavra foi simplificada a amplificada ao mesmo tempo. Com isto a sociedade comunista deixa de ser uma sociedade sem classes, uma síntese da sociedade industrial com as comunidades tribais para ser toda e qualquer forma de opinião contrária à proposta do neoliberalismo agressivo de Guedes. 

Dentro deste arcabouço, João Dória, Rodrigo Maia e Wilson Witzel são comunistas, quando na verdade sequer são sociais democratas, também tidos como comunistas. Qualquer um o é, inclusive quem protesta, quem expressa indignação diante da morte de mais de 41. 000 pessoas, quem defende o isolamento social é um preguiçoso (imagem atrelada ao Socialismo, que na percepção simplista é sinônimo de Comunismo). 

Antônio Carlos Costa é um pastor cujas palavras e reflexões, resguardas as devidas proporções, são embasadas e refletem a mais profunda coerência com o espírito da reforma protestante, que tem como produto de seu espírito uma Teologia Pública (que parte de uma temática pública e socialmente relevante). Mas no ambiente atual ele tem sido chamado de comunista, petista, eleitor do PT, lulista, e coisas afins, basta entrar na página dele no Facebook, ou no instagram para ver. 

É o efeito da polarização politica e do embate com viés emocionais. É assim que alguém entre em um protesto promovido pela ONG Rio de Paz e comete ato de vandalismo contra a manifestação e por tabela aos mortos e enlutados em razão da pandemia, frequentemente negada pelos apoiadores do atual governo. 

É necessário que se produza uma realidade alternativa ao número de mortos. E esta passa pela negação da pandemia, pela apresentação de fórmulas mágicas onde a hidroxicloroquina e a ivermectina são a solução para o problema dantes negado. Mortos? Sempre tivemos, é o nosso fim e ponto. Com isto a capacidade de se solidarizar com os que perdem seus filhos, como no caso do pai que recolocou as cruzes no lugar. 

Neste momento uma ideia me ocorre. Um número elevado de mortos retira das pessoas a capacidade de se solidarizar. É como se ocorresse uma naturalização de mortes de jovens, crianças, adolescentes. Antes de ocorrer com as vitimas do COVID-19, tal processo ocorreu com a morte de policiais. Sim, vidas e pessoas foram institucionalizadas e reificadas. O pai, a mãe, o trabalhador que ia para a frente de combate deixou de ser uma pessoa para ser um número. 

No caso das vítimas do COVID-19, o processo é o seguinte: as vítimas deixam de ser pessoas para serem, ou se tornarem números inflados pelos governadores para poderem fraudar os cofres públicos e minar a economia. Esta ideia é recorrente nas redes sociais (ver aqui, aqui e aqui). Mesmo não sendo esta a intenção do Pastor Antônio Carlos Costa o protesto dele fere este tipo de negacionismo. 

Graças à Deus, o conflito que se instaurou ali no protesto não resultou em conflitos maiores. Vi uma live do Antônio Carlos Costa em que ele afirma ter orientado os voluntários que ali estavam para que não reagissem a quaisquer agressões. Eles eram esperadas? Claro que sim, basta ver a página do referido Pastor no Facebook e constatar a agressividade gratuita que o mesmo sofre, por parte da militância pró governo. Honestamente não sei onde isto irá parar, mas oro a Deus para que ele intervenha, porque a sandice está nos ganhando. 

Marcelo Medeiros

Uma Palavra a Respeito da Teocracia



Há algum tempo atrás compartilhei em minha rede um texto a respeito da possibilidade de corrupção de toda forma de governo humano, mais ainda, o texto na verdade aborda o caráter corruptor do poder. Este é o sentido do texto compartilhado, cujo conteúdo segue abaixo transcrito.
Quanto mais altas as pretensões do poder, mais intrometido, desumano e opressivo ele será. Teocracia é o pior de todos os governos possíveis. Todo poder político é, na melhor das hipóteses, um mal necessário, mas é menos mal quando suas sanções são mais modestas e comuns, quando afirma que não é mais útil e conveniente e coloca para si mesmo objetivos estritamente limitados. Qualquer coisa transcendental ou espiritual, ou mesmo qualquer coisa muito fortemente ética em suas pretensões é perigosa e encoraja-o a se intrometer em nossa vida privada (....). Assim a doutrina renascentista do direito divino é para mim uma corrupção da monarquia (....) os misticismos raciais, da nacionalidade. E a teocracia, eu admito, e até insisto é a pior de todas. (C. S. Lewis, Lírios que apodrecem, in: A Última Noite na Terra, pág. 53). 
Em contexto amplo o texto não é uma crítica à teocracia em si, mas às pretensões de toda forma de poder, inclusive a democracia. Não tardou para que algumas pessoas entrassem em meu perfil contestando a citação, pelas razões mais diversas e na maioria das vezes, para não dizer em todas, equivocadas. Evitei ali falar a respeito do que seja uma Teocracia e corrigir o erro, mas me valerei deste espaço para tal.

Em primeiro lugar, existe a falsa ideia de que a Teocracia seja um governo exercido de forma direta por Deus, neste caso o Deus judaico cristão. Na verdade a maioria dos soberanos da antiguidade viam a si mesmos como deuses. Este é o caso, por exemplo do Faraó. Na modernidade existe um caso curioso de uma possível Teocracia, que é o do Tibet. Caso este tenha sua independência reconhecida, seu representante político máximo, o Dalai Lama, é reconhecidamente um deus.

Em segundo lugar analisando alguns textos bíblicos é possível perceber que desde a queda o deus bíblico, judaico-cristão jamais exerceu seu governo de forma direta, e isto por uma razão extremamente básica os homens em geral não suportam lidar com as manifestações teofânicas. Os textos bíblicos abaixo transcritos  esclarecem melhor a questão.
E todo o povo viu os trovões e os relâmpagos, e o sonido da buzina, e o monte fumegando; e o povo, vendo isso retirou-se e pôs-se de longe. E disseram a Moisés: Fala tu conosco, e ouviremos: e não fale Deus conosco, para que não morramos. E disse Moisés ao povo: Não temais, Deus veio para vos provar, e para que o seu temor esteja diante de vós, a fim de que não pequeis. E o povo estava em pé de longe. Moisés, porém, se chegou à escuridão, onde Deus estava. Então disse o Senhor a Moisés: Assim dirás aos filhos de Israel: Vós tendes visto que, dos céus, eu falei convosco (Ex 20. 18 - 22 ACF). 
Deus se revela em meio a uma tempestade mas o povo não suporta ouvir Deus e pede que um representante o faça, é assim que nasce a instituição dos profetas. Mas em uma Teocracia, é, ou seria mais do que comum que o Deus Todo Poderoso, Onisciente e Onipresente, descesse e se manifestasse diretamente aos seus súditos. E o que vemos no texto acima transcrito é que os súditos deste não suportam a sua manifestação gloriosa. 

Na verdade este não é um primeiro texto em que se afirma esta inviabilidade de uma Teocracia direta. Tal afirmação pode ser vista já no relato do que conhecemos, desde Paulo e Agostinho como sendo a Queda. 
Então foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus; e coseram folhas de figueira, e fizeram para si aventais. E ouviram a voz do Senhor Deus, que passeava no jardim pela viração do dia; e esconderam-se Adão e sua mulher da presença do Senhor Deus, entre as árvores do jardim. E chamou o Senhor Deus a Adão, e disse-lhe: Onde estás? E ele disse: Ouvi a tua voz soar no jardim, e temi, porque estava nu, e escondi-me. E Deus disse: Quem te mostrou que estavas nu? Comeste tu da árvore de que te ordenei que não comesses? (Gn 3. 7 - 11 ACF). 
Há muito que ser dito e desenvolvido por meio da citação acima. Na concepção judaica os capítulos iniciais do livro de Gênesis não são literais, são arquetípicos, uma espécie de modelo da história de Israel. A criação é símbolo da criação de Israel, a luz simboliza a Torá, a árvore da vida é a própria sabedoria. Diante de tais elementos, é possível que aquilo que conhecemos ser a queda seja a recusa em ouvir a voz de Deus no monte. 

O fato inconteste é que o povo pede a Deus um representante, e Moisés se torna o modelo deste tipo de representante. 
O Senhor teu Deus te levantará um profeta do meio de ti, de teus irmãos, como eu; a ele ouvireis; Conforme a tudo o que pediste ao Senhor teu Deus em Horebe, no dia da assembléia, dizendo: Não ouvirei mais a voz do Senhor teu Deus, nem mais verei este grande fogo, para que não morra. Então o Senhor me disse: Falaram bem naquilo que disseram. Eis lhes suscitarei um profeta do meio de seus irmãos, como tu, e porei as minhas palavras na sua boca, e ele lhes falará tudo o que eu lhe ordenar. E será que qualquer que não ouvir as minhas palavras, que ele falar em meu nome, eu o requererei dele. Porém o profeta que tiver a presunção de falar alguma palavra em meu nome, que eu não lhe tenha mandado falar, ou o que falar em nome de outros deuses, esse profeta morrerá. E, se disseres no teu coração: Como conhecerei a palavra que o Senhor não falou? Quando o profeta falar em nome do Senhor, e essa palavra não se cumprir, nem suceder assim; esta é palavra que o Senhor não falou; com soberba a falou aquele profeta; não tenhas temor dele (Dt 18. 15 - 22 ACF). 
Terceiro, o Deus bíblico é aquele que detém todo o poder. Ser um representante dele significa lidar com a forma mais elevada de poder e estar sujeito às piores formas de corrupção. É da corrupção e da decadência decorrentes das formas mais elevadas de poder que nascem adivinhos, necromantes e feiticeiros da antiguidade. Todos falam em nome de um pode superior, na verdade divino. Daí a necessidade de sólidos critérios para que se discirnam quem é quem.

É seguramente neste contexto que a fala de John Emerich Edward Dalberg-Acton, ou Lord Acton, a respeito do poder, quando este afirmou corretamente que: o poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente. Esta regra é visível nas Escrituras Sagradas, onde o poder de alguma forma afeta negativamente os homens. 

Afeta Moisés que após descer do Monte tem seu rosto resplandecente ao ponto do povo não conseguir olhar para ele. A experiência era algo do tipo contemplar o sol em sua magnitude. Diante de tal o povo cobre o rosto de Moisés para não ter de ver tamanho peso de Glória (Ex 34. 29 - 34). Paulo apóstolo afirma que esta glória era transitória e que o véu foi mantido para que os israelitas não percebessem a transitoriedade da mesma (II Co 3. 12 - 15). E aqui temos a primeira corrupção da teocracia. 

Exemplos não faltam Gideão após dar livramento ao povo de Israel, rejeita ser o rei do mesmo, mas faz para si uma estola sacerdotal e deixa mais de setenta filhos gerados com as muitas mulheres que teve ao longo da vida. Samuel não foi um juiz que amou o poder e as benesses resultantes do mesmo, mas seus filhos se corromperam. Aqui, percebe-se que quando o poder não corrompe o líder em si, corrompe seus descendentes. 

Saul, o primeiro rei de Israel, segundo a vontade do povo, cedo demonstrou apego ao poder. Davi não teve apego algum ao poder, seus interesses são notadamente espirituais, mas se corrompeu pelo direito do rei e foi além. Salomão se corrompeu em meio a tudo o que Deus lhe concedeu. Uzias se corrompeu ao exceder os limites de sua função como rei, e a História não para por aqui. 

Quarto, bem cedo a espiritualidade foi vista como a melhor forma de legitimação do poder temporal. O caso mais flagrante deste tipo de autenticação é o de Saul. Ele foi rejeitado por Deus por conta de extrapolar os limites de sua função real. Ao contrário do que ocorre na cultura cananéia, em Israel é importante a separação da figura do rei da do sacerdote. Saul não espera a chegada de Samuel e oferece os sacrifícios. No lugar de aprovação, seus sacrifícios terminam por lhe assegurar a rejeição. 

Diante de tal, ele pede que Samuel o acompanhe junto ao povo. A figura de um profeta dá legitimidade ao reinado, afinal, estes, e não o Rei, são os porta vozes de Deus. Eles trazem a manifesta vontade de Deus e garantem, ou afirmam, que acima dos governos humanos está o divino, e a palavra dos mesmos condena, ou isenta e legitima o Rei. Não sem razão, Davi, Salomão (mesmo com sua flagrante corrupção), Josafá, Uzias, Ezequias, Josias mantém profetas em sua corte. 

O mesmo se dá em relação ao rei Acabe. Ele aborrece a Micaías, o profeta do Senhor, mas mantém os profetas de Baal e de Asera em Israel. Com que intuito? Garantir a legitimidade da religião, ou do poder espiritual, ao poder temporal. É neste hiato que os espaços dos falsos profetas é garantido. Nossa tendência é a de ler as narrativas sobre a vida de homens como Elias e Elizeu e ver neles modelos de sucesso e aceitação popular. Nada mais distante da verdade. 

O verdadeiro profeta (a despeito dos milagres que faz e apresenta), é um marginal. Não por conta da lei, em si, mas por conta da percepção popular. Elias era tido como agitador de Israel. Somente o piedoso Ezequias deu ouvidos ao profeta Isaías, e há quem garanta que o mesmo morreu durante o reinado de Manassés (o mais ímpio dos reis em Israel). Jeremias e Ezequiel não tiveram a mesma sorte. Eles não se dispuseram às estruturas do poder. 

Esta busca por legitimidade religiosa é vista no Apocalipse através da figura da Besta que emerge da Terra e da que emerge do mar. Esta última simboliza o poder terreno, político, ao passo que a primeira simboliza o poder espiritual, tanto que tem aparência de cordeiro, mas voz de dragão, indicando com isto, que a despeito da aparência que possua ela representa satanás. É deste que vem a legitimação do Império romano. 

O Novo Testamento é explícito ao colocar o Mundo como palco de dominação e atuação do Diabo. A ele foi dado os reinos deste mundo (Mt 4. 7 - 10), e ele os dá a quem a quiser e estiver disposto a lhe render adoração. Ele é o príncipe deste mundo (Jo 12. 31; 14. 30; 16. 11; I Jo 5. 19), é também do deus deste século (II Co 4. 4). Tais expressões apontam para a inviabilidade do projeto de uma Teocracia, seja evangélica, muçulmana, reformada, protestante, ou o que quer que seja. 

Quinto, entender o governo de Deus é entender que ele se concretiza na sujeição do povo à lei (no caso do povo de Israel), ou à percepção desta por parte de Jesus Cristo no sermão da Montanha (Mt 5 - 7). O discurso de Samuel na posse do rei Saul aponta para o fato de que Deus não tem compromisso com forma alguma de governo. Escrevi a este respeito em minha apostila de livros históricos I. Neste trabalho resumido fiz citação a Breugmann e articulei com o texto abaixo transcrito. 
E todo o povo disse a Samuel: Roga pelos teus servos ao Senhor teu Deus, para que não venhamos a morrer; porque a todos os nossos pecados temos acrescentado este mal, de pedirmos para nós um rei. Então disse Samuel ao povo: Não temais; vós tendes cometido todo este mal; porém não vos desvieis de seguir ao Senhor, mas servi ao Senhor com todo o vosso coração. E não vos desvieis; pois seguiríeis as vaidades, que nada aproveitam, e tampouco vos livrarão, porque vaidades são. Pois o Senhor, por causa do seu grande nome, não desamparará o seu povo; porque aprouve ao Senhor fazer-vos o seu povo. E quanto a mim, longe de mim que eu peque contra o Senhor, deixando de orar por vós; antes vos ensinarei o caminho bom e direito. Tão-somente temei ao Senhor, e servi-o fielmente com todo o vosso coração; porque vede quão grandiosas coisas vos fez. Porém, se perseverardes em fazer mal, perecereis, assim vós como o vosso rei (I Sm 12. 17 - 25 ACF). 
O que fica claro com esta citação? Fica explícito aqui que para Deus o que importa é que o povo tema ao Senhor, e o sirva com fidelidade e de todo o coração e lembre-se daquilo que Deus faz e continua fazendo. Observando o texto percebe-se que:

  1. o povo reconhece que erra ao escolher um rei. É um pecado a mais face aos anteriormente cometidos.  
  2. Samuel reafirma que o povo agiu mal, mas que o mal pode ser amenizado se, e tão somente se, o povo persistir em seguir a Deus. 
  3. A despeito do erro contumaz e rebelde do povo, Deus é seu Dono e Amo, se o povo reconhecer isto, tudo irá bem. 
  4. O povo jamais deverá se render ao culto às imagens de escultura, este é um dos cernes da aliança. 
  5. Ao lado da figura do rei permanece a figura do sacerdote, cuja função consiste em ensinar e interceder a Deus pelo povo. 
  6. Em face da rebeldia e da rejeição dos termos da Aliança, o que o povo experimenta? Rejeição e Castigo, com, ou sem Rei.
  7. Daí que a monarquia não seja uma garantia de que as coisas irão bem. Somente a obediência à lei garante isto. 
Algo similar acontece no Novo Testamento. Deus reina através de sua lei, neste caso aquilo que Tiago chama de lei da liberdade (Tg 2. 13). Jesus assimilou em parte a ética dos profetas mediada no tripé justiça, misericórdia e juízo (Mq 6. 8; Am 5. 24; Is 1. 17; Mt 23. 23, 24). Este tripé foi resumido na seguinte fórmula: tratai os outros como quereis que vos tratem. Nisso consistem a lei e os profetas (Mt 7. 12). 

Ter o Reino de Deus e participar deste consiste em atender ao apelo de amar ao próximo como a si mesmo, e a Deus sobre todas as coisas (Mt 22. 36 - 39), e de ser instrumento de Justiça e misericórdia juntamente (Mt 5. 6, 7), a fim de promover a paz (Mt 5. 9). A justiça do Reino nada tem a ver com a justiça forense, ela é mais próxima à justiça dos profetas e demanda interioridade e exterioridade. Isto é a concretização do Reino em termos práticos. 

Sexto, este Reino é só é acessível aos que são regenerados, ou nascidos de novo. Por quê? Somente estes podem de fato obedecer às leis do antigo pacto. Textos como Dt 30. 6; Jr 4. 4; 31. 31 - 35; Ez 36. 25 - 27) indicam a necessidade de uma transformação interior a fim de que o homem possa cumprir a lei. Paulo reforça esta ideia de que o homem na sua natureza, não pode ser fiel cumpridor da lei. 
Portanto, agora nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus, que não andam segundo a carne, mas segundo o Espírito. Porque a lei do Espírito de vida, em Cristo Jesus, me livrou da lei do pecado e da morte. Porquanto o que era impossível à lei, visto como estava enferma pela carne, Deus, enviando o seu Filho em semelhança da carne do pecado, pelo pecado condenou o pecado na carne; Para que a justiça da lei se cumprisse em nós, que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito. Porque os que são segundo a carne inclinam-se para as coisas da carne; mas os que são segundo o Espírito para as coisas do Espírito. Porque a inclinação da carne é morte; mas a inclinação do Espírito é vida e paz. Porquanto a inclinação da carne é inimizade contra Deus, pois não é sujeita à lei de Deus, nem, em verdade, o pode ser. Portanto, os que estão na carne não podem agradar a Deus (Rm 8. 1 - 8 ACF). 
A leitura deste texto derruba por terra toda pretensão da Teonomia e dos projetos de Teocracia Evangélica. Aqui se diz com clareza que fora da vida do Espírito a lei de Deus não pode ser cumprida. Não há possibilidade de uma moral cristã ser imposta a uma sociedade que não tenha uma disposição interna para tal. 

Por quais motivos as leis mais razoáveis são frequentemente quebradas, direitos humanos mais fundamentais são violados, regras e regulamentos são subvertidos? A explicação cristã e teológica é que falta a ação do Espírito de Deus para conduzir o ser humano à obediência ao mandamento. Na percepção humanística é falta de adesão interior à norma. Este é um problema real. Na percepção humanística, pode ser resolvido via educação, na cristã é via conversão. Em ambos os casos é possível ver um fio condutor, o da adesão interior. 

Sétimo, costuma-se confundir a ação providente de Deus, ou as intervenções miraculosas como demonstrações do governo de Deus. Assim, alguém pode perguntar: mas a Igreja não é teocrática? Em nenhuma Teologia Sistemática veremos tal afirmação. A História da Igreja, a começar pelo livro de Atos nos traz registros em que sorte são tiradas para ajudar na escolha de Matias. Tiago, possivelmente o irmão de Jesus traz uma palavra decisiva para a aceitação dos gentios na comunidade cristã. Como ele faz isto? Por meio de uma interpretação bíblica de um texto de Amós a decisão é tomada. No concílio anterior, a decisão foi tomada a partir da experiência de Pedro na Casa de Cornélio. 

A Igreja de Corinto é uma Igreja notadamente cheia de dons espirituais. Contudo, o que se vê na igreja é dissensão, partidarismo e personalismo. Deus governa esta Igreja? Não! Por quê? Deus é Deus de paz e não de confusão, em todas as Igrejas de Deus (I Co 14. 33 citação livre). O tamanho do presente post indica que uma análise acurada do assunto em tela é profundo. Mas fica aqui o post como indicador de reflexão no assunto.

Marcelo Medeiros. 

terça-feira, 2 de junho de 2020

Até quando?




Há seis anos atrás escrevi este post propondo uma reflexão a respeito da morte de um rapaz negro por linchamento. Na ocasião toquei no papel do Estado, Da igreja, mas não toquei na questão mais pontual: a do racismo. Não é reflexão fácil de se fazer diante do negacionismo, do revisionismo histórico, do que acham ser exagero, dos que realmente exageram na questão. Mas racismo é real e a morte de George Floyd foi pontual para a reflexão da questão. 

Há uns quinze anos atrás eu vi um filme chamado Babel, onde um policial abordava um atleta negro e na revista abusava da mulher do mesmo. Foi uma forma de humilhar um homem negro que possuía melhores condições socioeconômicas do que ele. Infelizmente a história de Mineápolis trouxe um desfecho mais trágico do que o do filme. Um policial contra o qual já haviam mais de dezoito queixas por abuso, sufocou um homem negro até que o mesmo viesse a óbito. 

Diante do fato inconteste, vejo crentes em redes sociais minimizando o racismo, que é grande nos Estados Unidos, e maior ainda aqui no Brasil. É algo que tem se tornando cada vez mais comum. Protesta-se contra o aborto, mas nada se faz em prol de crianças abandonadas (não é que as ações não existam, é que são raras). elaboram-se apologéticas contra o feminismo,. mas não se faz uma intervenção efetiva contra a violência à mulher. Fala-se contra os protestos nos Estados Unidos, da baderna, mas não se fala contra a violência racial. 

É óbvio que não sou favorável às manifestações de violência, nem as ações dos que se aproveitam da onda de revolta para fazer saques e depredar a propriedade privada, lojas, marcados. Mas como quem pensa preciso perguntar pelos catalizadores deste estado de anomia social. Creio que a não aplicação da lei. Neste aspecto o profeta Habacuque pode nos ajudar. Seu livro decorre do espanto diante do não cumprimento do código da aliança. 
Até quando, Senhor, clamarei eu, e tu não me escutarás? Gritar-te-ei: Violência! e não salvarás? Por que razão me mostras a iniqüidade, e me fazes ver a opressão? Pois que a destruição e a violência estão diante de mim, havendo também quem suscite a contenda e o litígio. Por esta causa a lei se afrouxa, e a justiça nunca se manifesta; porque o ímpio cerca o justo, e a justiça se manifesta distorcida (Hc 1. 2 - 4). 
O texto mostra o espanto do profeta diante de um quadro de violência e opressão, de contendas e de litígios judiciais, de frouxidão legal e de injustiça. E confesso que sinto falta deste espanto entre evangélicos que veem com naturalidade a morte de um George Floyd.  

Marcelo Medeiros. 

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Semente de Mostarda Versus Semente MacMundo



Prometi no Facebook Fazer uma resenha crítica deste livro. O título dele em Português pode induzir a erro. Explicarei. O Lado Oculto da Globalização (como defender-se dos valores da nova ordem mundial), possui no atual contexto uma ideia de teoria conspiracionista, na qual o cristão vê-se como vítima de um processo conspiratório para a destruição de valores da sociedade Ocidental (dita cristã), e implantação da nova ordem mundial por meio de pautas progressistas. Nada mais falso do que isto. 

Na conjuntura atual o conservadorismo, o obscurantismo e o espírito anticiência (que não são sinônimos e nem equivalentes entre si) tem ganhado espaço entre nós, por conta de uma visão que pode ser chamada de fundamentalista onde cada movimento da sociedade tem sido interpretado como uma ameaça à fé cristã. Assim, ganham espaço pensadores que fazem campanhas contra o feminismo, por exemplo. O perigo que tal forma de pensar representa, é que no afã de criticar o feminismo pode-se perder questões mais vitais à fé e ao evangelho como a violência contra a mulher e o racismo

Na perspectiva de Tom Sine a nova Ordem mundial não é a adoção de pautas progressivas. Ela sequer á nova, é tão antiga quanto. Nova Ordem Mundial é uma ordem que se opõe ao Evangelho. Este é representado pela semente de mostarda, ou pelo fermento colocado na farinha. Coisas pequenas que aos poucos vão influenciando e alterando o ambiente. No caso da semente de mostarda a vegetação, no do fermento uma massa. 

Já a semente MacMundo é marcada pela lógica de sucesso, ganho exaustivo e o conforto que o dinheiro e o consumo possam possivelmente garantir. É a lógica de Mamon, que é considerado o Deus do dinheiro para os povos do oriente. Na perspectiva do autor toda a estrutura deste mundo está voltada para a lógica de consumo. Daí que tanto a igreja, as instituições, a política e a própria educação tornaram-se presas desta lógica de consumo. 

Aqui é importante uma observação. A lógica do Evangelho representado pela semente de mostarda, pequena, mas cujo crescimento gradual revela uma árvore grande diante da qual as aves do céu se aninham. Mas o crescimento é lento e gradativo. Já a semente MacMundo adéqua-se à nossa realidade atual, marcada pela velocidade, pela ausência de radicalidade e profundidade. 

No tocante à Igreja, esta é descrita pelo Novo Testamento como sendo uma comunidade (palavra possivelmente composta por aglutinação dos termos comum e unidade) indicando com isto a verdade bíblica de que Igreja não é templo, placa, CNPJ, instituição, antes é ajuntamento de pessoas, que a despeito da individualidade se tornam unas em função daquilo que há em comum. Uma só fé, um batismo, um só Senhor, uma esperança, um só Espírito (Ef 4. 1 - 6). 

Esta também é uma comunidade de serviço, que no ato de servir., de ser sal e luz termina por influenciar a sociedade. É a comunidade em que as pessoas colocam seus dons e serviços em favor da causa do Reino de Deus. Viver no mundo é um viver missional. Tanto o trabalho e a formação secular quanto a teológica são parte do ser sal e luz neste mundo. 

Mas a lógica de consumo perverte o conceito e a ação da Igreja no mundo. Sob a lógica da semente MacMundo a igreja deixa de ser um ajuntamento de pessoas cuja unidade dá-se em razão daquilo que possuem em comum, e onde os bens materiais são parte daquilo que possuem em comum (o que garante a unidade), e passa a ser um prédio, uma instituição, uma franquia cuja finalidade é garantir aos consumidores da religião o conforto necessário quando as estruturas do MacMundo falham. 

A semente MacMundo, a despeito da promessa de realização de uma vida centrada na fruição de bens (na verdade aquisição, sequer consumidores somos mais), falha justamente porque a a verdade inexorável do Evangelho afirma que a vida do homem não consiste na abundância dos bens que ele possui. Nossa geração serve ao dinheiro porque acredita que ele possa trazer meio para consumir e assim realizar os sonhos de consumo. Mas no afã de servir ao dinheiro pode-se perder a vida. 

A fala de Tom Sine ganha eco quando se considera a emergência da lógica de consumo na política, mais do que isto a sobreposição da Economia sobre a vida humana, sobre a Ética. (Esta sobreposição pode ser vista no atual cenário). Diante das medidas de isolamento recomendadas pela OMS e adotadas pelos governadores e prefeitos a razão sucumbiu diante da possibilidade de perda salarial e de postos de emprego. Perder a vida tornou-se irrelevante. Foi totalmente esquecido que sem vida não há economia. 

Beyong Chul-Han, filósofo germano-coreano afirma em Sociedade do Cansaço que a finaceirização do mundo moderno contaminou a Política enquanto arte liberal (fazer realizado livre de coerções externas). O resultado é uma lógica opressora em que o opressor não está mais do lado de fora do sujeito, antes é o próprio sujeito que se torna opressor de si mesmo. E ele o faz impondo a si uma rotina que o leva à exaustão. 

Voltando à questão política, esta deixa de ser a arte de bem governar que é exercida por meio da discussão e passa a ser a garantia de uma economia que dê liberdade ao homem para empreender e consumir. Não se fala em liberdade para produção artística e intelectual, mas naquela que permite a fruição de bens. A vida em si não importa. 

Na educação o assunto não é menos animador. Diante do toda crise se pensa a educação e por uma razão bem simples. É a educação que garante a afirmação e o desenvolvimento de indivíduos que garantirão a permanência, o desenvolvimento e as  mudanças nesta mesma sociedade. Daí que diante das crises propostas educacionais sejam aventadas. Foi assim com a crise da modernidade que retirou o monopólio da educação das mãos da Igreja católica, e foi assim na década de trita do século passado, em que várias propostas educacionais foram aventadas. Cipriano Carlos Luckesi e Tomaz Tadeu Silva falam destas propostas em seus respectivos clássicos. 

Uma crítica  do autor no campo da educação dá-se por conta da ausência de reflexão, por parte dos educadores no tocante aos métodos que empregam, ao ponto de sequer saberem justificar suas ações pedagógicas. Aqui cabe ressaltar que ele está falando em contexto americano. No brasileiro, cabe o entendimento de que a educação até o inicio do século passado era privilégio das elites. Daí que a criação das Universidades preceda à qualquer reflexão sobre a educação básica e média (acessível exclusivamente aos religiosos e sucateada após a expulsão dos jesuítas). 

Sob este aspecto o  intelectualismo passa a ser visto como símbolo do status quo, e de esnobismo. ao lado desta percepção antiliberal cresce a ideia de que é a educação a garantidora de ascensão social. É neste hiato que crescem as buscas por um diploma de nível superior, e as instituições privadas que além de oferecer tais diplomas ainda o fazem sob a promessa de que de posse de tais diplomas os alunos irão se inserir melhor no mercado de trabalho. 

Não tenho nada contra as instituições de ensino privado. Vi pessoalmente gente de extrema qualidade nestas instituições. A minha em particular tinha uma proposta interessante: formar professores que refletiam suas respectivas práticas. Mas ao lado deste discurso havia um de inserção  no mercado de trabalho. Até os textos trabalhados em sala de aula eram aqueles que figuravam em concursos. Qual o problema disto? Os seis períodos de Metodologia cientifica não garantiam a formação de profissionais reflexivos. 

Acredito que por trás de todo este ódio à educação pública, ao Paulo Freire (cujas ideias jamais foram executadas aqui) é fruto de  um ressentimento ( que não pode ser confundido com o uso que Nietzsche faz deste termo) face à não realização desta promessa MacMundo. Emm redes sociais tive de lidar com questionamentos do tipo: há cem anos não temos gênios na literatura. Um questionamento perigoso se considerarmos que Machado de Assis, nosso maior gênio era autodidata (será que por conta de sua condição étnica?) .

C. S. Lewis fala deste assunto em um artigo intitulado lírios que apodrecem, do qual falarei em outro post aqui, mas cuja ideia central posso adiantar. Tal como no caso inglês, a educação fracassa em desenvolver nas pessoas algum tipo de gosto, seja literário, seja científico, ou artístico em geral. Sem este processo as pessoas terminam por não descobrir suas respectivas vocações e abraçam a lógica MacMundo (terminam fazendo trabalhos insuportáveis pelo puro e simples dinheiro). Isto é semente MacMundo. 

A proposta de Tom Sine é a de uma vida simples, de ruptura com a lógica de consumo que alimenta o MacMundo (oposto a Deus e aos valores do Evangelho).  É somente com tal ruptura que a Igreja poderá voltar a viver sua dimensão ministerial e missional no mundo. Recentemente discuti com um crente nestas comunidades do Facebook,  que afirmava ser o feminismo mm mal a ser combatido. Há alguns que pensam da mesma forma em relação ao homossexualismo e até ao marxismo. Estes citam textos do Evangelho (claro que fora de contexto). 

Vi recentemente um pastor que não sei se pela pressão da massa que o chama de marxista, comunista, postar um livro de um autor polonês que critica o marxismo. Eu também critico e leio autores em apologética que fazem tais críticas, mas percebo algo que não vejo na maioria dos ministros eclesiásticos. Marx tem seu lugar como pensador não pelas razões que os revisionistas lhe atribuem. Para Marx o Capital era o grande deus do período em que ele estava vivendo. Em outras palavras: contrariando o que foi dito por Nietzsche, Deus não morreu, virou dinheiro (frase de Giorgio Agambem). 

Marx presta um inegável serviço ao Evangelho, ao denunciar na linguagem de sua época a semente MacMundo como responsável pela subversão da própria Religião, que deixa de ser aquilo que nos toca de forma incondicional, para ser uma ferramenta à mais ao serviço da lógica de consumo. Mas qual é a saída para tudo isto? Com certeza não é a revolução proposta por Marx que toma do burguês os meios de produção (pensamento do autor do livro). A revolução proposta por Marx não se aplica mais a uma sociedade pautada no capitalismo financeiro. 

O que Tom Sine propõe, à semelhança de Stott, é uma forma de contra cultura, onde a Igreja ao invés de prestadora de serviços fast foods passa a  ser uma comunidade contracultural baseada nos moldes evangélicos. Estes se  concretizem  no estilo de  vida simples,, onde no  lugar de angariar recursos para o consumo, cada cristão dispõem de seus recursos para a correção das injustiças sociais, cumprindo o proposto na parábola do administrador infiel. 

A semente de mostarda traz em si a negação do discipulado e  da educação em série.  como se seres humanos pudessem ser formados em série, nos moldes industriais. A semente do grão de mostarda aponta, antes que houvesse uma formulação do conceito de individualidade, o Evangelho já tratava daquilo que Caio Fábio chama de individuação, que nada mais, nada menos é do que o indivíduo formado para agir. 

Em Cristo, Marcelo Medeiros. 
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