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sexta-feira, 26 de junho de 2020

Crise Ética, ou Eticorragia



O título do presente post remete-nos a um capítulo de um dos livros mais despretensiosos, de autoria de um dos escritores mais desprovido de quaisquer pretensões, que tenha visto ao longo da vida. O primeiro livro dele foi o Icabode - da mente de Cristo à secularização de mente - onde o autor fala a respeito de como o processo de modernização alterou a cosmovisão e mentalidade cristãs. Ao prefaciar o Excelentíssimos Senhores o autor afirmou que não contava com o sucesso do primeiro livro, por conta do volume de páginas do mesmo.

Na perspectiva do autor em apreço e na minha (também sou autor), livros volumosos desestimulam uma geração que se vê diante da possibilidade de uma gama volumosa de informações, bem mais fáceis de serem digeridas do que a leitura de livros críticos e volumosos. Mas o livro teve lá a sua acolhida e diante de tal a Ultimato, resolveu publicar mais um título do referido autor.

Ao que me parece Excelentíssimos Senhores é uma apanhado de artigos de autoria do Rúbem Amorese para a revista Ultimato. Alguns destes são um retorno às temáticas já tratadas no livro Icabode, sendo que de forma resumida. Eticorragia é o termo que Amorese emprega para o declínio ético na sociedade moderna em decorrência de uma crise de reflexão, de intelectualidade.

Aquilo que chamamos de moral é um conjunto de costumes e práticas, que visam tornar a vida em sociedade viável. Ela nos é imposta de forma coercitiva? Os que respondem afirmativamente o fazem acertadamente, primando por aqueles aspectos em que a nossa moral vai de encontro com os nossos desejos. Mas a moral entra em nossa mente por meio de histórias que nossos pais, mestres, padres, pastores nos contam, cujas lições podem ser aceitas, ou rejeitadas parcialmente, ou na íntegra.

Já a Ética é a reflexão que o dia-a-dia impõe ao ser humano. Ser Ético é ser capaz de refletir e dar respostas aos dilemas que a vida propõe. É neste contexto que surge a discussão a respeito de temas como aborto, clonagem, meio-ambiente, economia, saúde, afinal, por que o Estado deve desenvolver políticas públicas? Por que o estado deve dar o máximo de liberdade ao indivíduo? A questão aqui não é meramente econômica, conforme se possa pensar. Não! A Economia hoje é vista como uma ciência cuja finalidade é o domínio do funcionamento dos mecanismos de mercado. (Não quero dizer que todos os economistas a vejam assim, mas que esta é a percepção generalizante, e errônea).

Os primeiros economistas, dentre os quais Adam Smith e Karl Marx não eram estes técnicos cujo pensamento é voltado ao funcionamento do mercado financeiro. Eles também eram Filósofos Morais, ou moralistas. Este é outro termo que se perdeu ao longo do tempo. Um moralista hoje é visto como uma pessoa que busca impor sua moral aos demais. Nos idos dos séculos XVIII e XIX este termo era aplicado à pessoas como Blaise Pascal que analisavam as entranhas da alma humana. Mas é hora de voltar à Ética.

Amorese identifica uma crise Ética. O primeiro exemplo dele é o caso do antigo programa Você Decide, cujo título o autor vê como sugestivo. A sugestão do nome dá a entender em uma época marcada por uma subjetividade extrema, o homem possa passar por cima de todo e qualquer legado moral e fazer escolhas tendo como norte apenas seus desejos e sua vontade. Preste atenção porque discussões à parte este é o grande legado do autor para a discussão atual.

Para C. S. Lewis um erro recorrente dos moralistas na atualidade é a crença de que tal como ocorre em uma loja, mercado, ou shopping onde o sujeito (de fora) escolhe a peça, ou o produto que lhe agrada, tem - se a impressão de que na moral algo similar possa ocorrer. Mas ninguém se coloca em um vácuo moral para poder escolher uma moral. Já estamos em uma moralidade e é a partir da moralidade que recebemos através das histórias que nos foram contadas que escolhemos o que tem de permanecer e o que podemos descartar.

Em Cristianismo Puro e Simples Lewis fala que todos tem a noção do que é certo e do que é errado e que diante da transgressão da regra, ou norma, ninguém questiona, ou questionava a norma em si, mas todos procuram justificar porque no caso deles esta não se aplica, ou porque podem ser uma exceção. Pelo menos na época dele era assim. O chamado você decide (a partir de sua subjetividade) não existe. Nossa decisão não faz com que o errado se torne errado, porque nos o escolhemos. e é aí que mais uma vez a fala de Amorese é primorosa.

O episódio ao qual o autor se refere é o alguém que acha uma mala com uma quantia exorbitante de dinheiro e o apresentador joga para o público a decisão a respeito do devolver, ou não a quantia. A decisão majoritária do público é pela não devolução. Ali fica desenhada a mentalidade de uma considerável parcela da nossa população. Ao rever o livro não consegui identificar as possíveis razões que as pessoas tenham apresentado para a exceção da regra.

Um outro exemplo, ao qual ele frequentemente apela para demonstrar a crise ética é a questão do aborto, digo da defesa apaixonada dos defensores da causa. Já pontuei aqui que não sou favorável à prática do aborto e pontuei a necessidade de desumanização do feto a fim de que a ação possa ser tomada sem muitos dilemas.

Do ponto de vista Teológico e Filosófico a decisão não é nada fácil. Jó desejou ter sido abortado quando se viu diante da perda de todos os seus bens e o Pregador afirma em Eclesiastes que é melhor ser um aborto do que viver e não gozar o bem nesta terra. Em ambos os casos a vida se mensura pelo bem que se vive.

A moral cristã, como toda moral, vê as coisas a partir do sexo pré conjugal, ou do mau uso de métodos contraceptivos, ou até da falta de planejamento familiar. Do ponto de vista ético e reflexivo a questão não é nada fácil de se resolver. Uma mãe que tem de abortar  e passa por seus dilemas interiores vive a realidade da crise ética. Todavia crise aqui nada tem a ver com o modo como Amorese concebe. Aqui a crise é um processo que leva à decisão. O uso que o autor faz de crise é de uma conjuntura difícil sob uma dada perspectiva (que no caso do presente post é a Ética).

A crise no sentido do autor dá-se por conta de uma cultura hedonista, que privilegia o prazer em detrimento de qualquer forma de sofrimento. É este tipo de percepção que faz com que qualquer decisão a ser tomada seja em prol da facilidade. Se queremos emagrecer, não se faz necessária a disciplina alimentar acompanhada de exercícios. Queremos conhecimento, não é necessário estudo e leitura, bastam alguns cliques no doutor Google e a informação está toda pronta ali.

Tanto o emagrecimento saudável quanto o Estudo demandam disciplina. em ambos ocorre algo que C. S. Lewis compara a uma caminhada no deserto escaldante e ao momento em que as areias quentes entram na sola do pé. Toda caminhada proporciona seu prazer, mas junto do prazer vem os inconvenientes. A cultura atual não suporta mais isto.

Em áureas épocas o enriquecimento era fruto da disciplina em trabalhar aliada à frugalidade e a ascese de bens mundanos. Foi esta a análise que Weber fez a respeito da contribuição do puritanismo americano para fomentação do capitalismo. Dizem os comentaristas que ele igualmente previu o enfraquecimento da religião em razão da equação riqueza, busca por prazeres.

Mas o protestantismo que produz a Ética do Trabalho nos países europeus e na América, não desembarcou aqui. Aqui é a terra que tudo produz, tudo dá, o paraíso na terra, o lugar em que o esforço é dispensável. Não estou dizendo com isto que acredito no discurso da meritocracia, mas que igualmente desacredito da ideia de que as coisas caiam do alto aqui, no Brasil, de que todo sejam potenciais ganhadores da loteria. 


Somos herdeiros de uma ética frágil, que de alguma forma permite a luta contra o aborto, e a total indiferença ao número de crianças abandonadas. Pior, não se desenvolve sequer um trabalho robusto, e socialmente relevante de apoio às mães que passam por uma situação concreta de perigo. Voltando ao autor, em apreço, me pergunto quais seriam as reações de Rúbem Amorese, diante das publicações cristãs em rede social?


Ao que parece quando achamos uma carteira, ou alguma coisa de valor, que pertença a outrem, e não devolvemos cometemos crime de apropriação indébita, um ilícito já presente no código penal. No caso do programa ocorreu uma anuência para com um crime. Mas o problema é de natureza criminal somente? Óbvio que não! Mas algo similar acontece hoje no debate a respeito das Fakenews. 

Não houve a criminalização de ilícitos cometidos na internet, e este tem sido o principal argumento no qual os defensores do atual governo se apegam para justificar as ações daquilo que tem sido chamado de milícia digital. Os crimes de injúria, calúnia e difamação já são previstos no código penal. Mas quando se volta à proposta do autor é possível uma percepção maior da temática. 

Ela não pode ser vista unicamente a partir do ponto de vista técnico, no caso o do Direito. Ações políticas precisam ser vistas do ponto mais plural e multidisciplinar possível. No Campo da Moral, as considerações mais viáveis são as da Filosofia, e por que não da Teologia? Algo pode não ser crime, mas ser imoral (algumas leis o são, outras além de imorais ainda são injustas). Fakenews não é crime tipificado no código penal, mas é moral? Lógico que não! É imoral em excesso. 

Agora entra a minha percepção pessoal, particular. O senso ético e moral antecedem a criação de leis. A despeito de alguns dicionários associarem a religião à moral (algo que já aparece em August Comte), acredito na existência de algo chamado Tao, uma espécie de fio condutor moral que guia as mais variadas formulações morais. 

Lewis assume o posicionamento de que este Tao antecede ao próprio cristianismo. Mas isto nos interessa? Sim, porque tanto crentes quanto não crentes respondem a uma moral, ou uma espécie de apelo moral. Que apelo é este? Falar a verdade de coração, não difamar, não espalhar notícias falsas, ser solidário. 

Para Caio Fábio o Evangelho não é Ético e menos ainda moral. Ele desenvolve a ideia no livro Sem Barganhas com Deus. Ele dá como exemplo as escolhas divinas, desde um Abrão que não tinha lá aqueles amores pela verdade até um Judas (que sabidamente era o diabo, além das mais variadas falhas de caráter). Mas o próprio Caio reconhece que existem consequências éticas que o Evangelho traz. 

Jesus resume a Ética da lei e dos profetas nos mandamentos de amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo (Mt 22. 38, 39), e a consequência do amar a Deus e ao próximo é traduzida na regra de ouro: tudo o que vocês querem que os outros façam a vocês, façam também vocês a eles; porque esta é a Lei e os Profetas (Mt 7. 12). 

Sob a ótica do Evangelho o exercício ético consiste em se colocar no lugar do outro e uma vez colocado no lugar do outro perguntar: como gostaria que agissem comigo se tivesse no lugar de quem indo para a Igreja é assaltado, espancado, ou perde a mala de dinheiro, ou sendo uma adolescente, engravidou? É este exercício que a Ética do Evangelho nos convida. 

De igual modo o imperativo categórico com o seu age de tal forma que a tua ação se torne uma máxima universal. Em que consiste o Imperativo Categórico? Num exercício de imaginação. Qual? Este: o modo como trato uma pessoa que precisa de minha ajuda, a adolescente que engravidou, ou o sujeito que perdeu uma carteira, ou algum outro bem, pode ser universalizado?

Imaginem uma sociedade em que todos possam espalhar mentiras a respeito das outras, levar os pertences dos outros, ser indiferentes uns para com os outros, uma sociedade em que não existam bons samaritanos, ou parteiras que descumpram as ordens e os projetos eugênicos do soberano. Imaginou? 

Marcelo Medeiros. 

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