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terça-feira, 15 de janeiro de 2019

A Natureza dos Demônios - Agentes da maldade no mundo espiritual



O termo batalha espiritual pressupõe, por si só, a existência de lados antagônicos em torno de uma questão. Não há sentido em se falar de um conflito espiritual a partir de uma percepção monista, salvo se houver admissão de que o Absoluto possa trazer alguma forma de conflito em si. Fato, é que a partir de um determinado momento as Escrituras Judaicas inserem a figura dos demônios em sua teologia, mais do que isto faz desta inserção uma forma de de explicar a realidade e os constantes conflitos entre o povo judeu e os que buscavam corromper sua fé. 

Aqui, convém que se afirme uma verdade: poucos são os teólogos dispostos a levarem às ultimas consequências a declaração de que a revelação (ou se quiser entender como "percepção do sagrado", que o seja, é progressiva, ou processual). Com isto quero dizer que o modo como o homem percebe e descreve o  sagrado é histórico. 

Que o leitor não se espante caso eu abuse do negrito e do itálico, mas é algo necessário a fim de que algumas verdades teológicas possam ser estabelecidas neste estudo. De Gn até I Sm não há o mínimo indício de uma crença judaica na existência dos demônios. Pelo menos não como ocorre no no livro de Tobias e no restante da literatura apócrifa (apocalíptica). 

Mesmo as referências em que se fazem menção aos demônios, na verdade são descrições da percepção que se tinha a respeito dos ídolos (Dt 32. 17; II Cr 11. 15; Sl 106. 37). Não há, por parte do judeu, o menor interesse em formalizar sua crença nos demônios. Tanto as coisas boas, quanto as coisas más eram atribuídas à Deus (Is 45. 7). O anjo que se manifesta para Balaão, digo para a mula deste adivinho também é chamado de Satã no texto em hebraico (Nm 22. 22, 32). 

Um indicador importante é o modo como II Sm 24. 1 e I Cr 21 narram o mesmo fato. Na versão antiga, Deus se ira com Davi e com o intuito de o castigar, o incita  enumerar o povo de Israel. Na versão mais recente não é mais Deus, mas Satã quem se levanta contra Davi. Mesmo em Jó, o termo não significa ainda um princípio mal que se opõe a Deus, mas uma espécie de promotor público do céu (Jó 1 - 2). 

É tradição entre nós atribuir textos de Is 14. 12 - 15 e Ez 28. 12 - 15 o caráter de descrição de queda de Satanás, quando não o são. Falam respectivamente dos soberanos de Babilônia e Tiro. Tanto que Norman L. Geisler em sua Teologia Sistemática lançada pela Casas Publicadoras das Assembleias de Deus, assume que o entendimento de que tais textos sejam uma referência a uma possível queda de Satanás, seja na verdade uma inferência por analogia. 

O que quero falar aqui é que a leitura direta dos textos sugere o entendimento de que ambos falem de soberanos humanos. O contexto cultural em que o bem e o mal são explicados em termos de efeitos da obediência e desobediência à aliança, não abre espaços para a crença em demônios, como agentes do mal, e nem como seres possuidores de autonomia para agir. 

A expressão δαιμονιων (daimonion), vem do grego δαιμον, que na cultura grega era um deus, ou gênio bom que seguia as pessoas mais proeminentes na sociedade. No diálogo platônico Eutífron, é dito por Eutífron que Sócrates afirmava ouvir um δαιμον a todo o momento. Com isto a Filosofia de Sócrates, que é primorosa era atribuída à ação demoníaca. 

Aqui há que se lembrar que na cultura grega não há a diferença entre demônios e deuses. Somente a partir da Filosofia Helenística que se desenvolverão na cultura grega a crença em uma hierarquia demoníaca que fará a mediação entre deuses e os homens. Logo a percepção de que os demônios são maus caberá aos judeus, que farão associação destes com os espíritos que lançam males nos homens. 

É no livro de Tobias que tal entendimento aparece pela primeira vez. Antes de abordar tal passagem, necessário se faz observar que embora a declaração de fé das Assembleias de Deus não reconheça a inspiração de tais livros, e as teologias criticas, bem como as Ciências da Religião, lancem dúvidas sobre o caráter canônico de qualquer livro, há que se reconhecer a diferença entre valor sagrado e valor histórico. 

Para autores como Wheeler e Gabel, o valor canônico é constituído pela leitura e importância que a comunidade dá a um determinado livro. Já o valor histórico é atribuído ao historiador e ao exegeta, que a partir de determinados documentos procuram entender o contexto cultural em que determinados textos foram elaborados. 

Com isto, quero dizer que entendo a posição dos formuladores da Declaração de Fé das Assembleias de Deus. Mas como Teólogo e Cientista da Religião não posso deixar de dar o devido valor aos documentos históricos. Tal como não posso ignorar o processo linguístico na formulação do conceito judaico de demônios. Feitas tais considerações poderei passar para o livro de Tobias. 
Então Tobias perguntou ao Anjo: "Azarias, meu irmão, que remédio há no coração, no fígado e no fel do peixe?" Respondeu-lhe ele: "se se queima o coração, ou o fígado de um peixe diante de um homem, ou uma mulher atormentado por um demônio, ou por um espírito mau, a fumaça afugenta todo o mal e o faz desaparecer para sempre. Quanto ao fel, untando com ele os olhos de um homem que tem manchas brancas, e soprando sobre as manchas ele ficará curado (Tob 6. 7 - 9 Bíblia de Jerusalém). 

Particularmente não uso como regra para minha vida prática o ato de exorcizar espíritos maus através de queima de quaisquer substâncias. Mas reconheço o valor histórico de tais narrativas. Estas refletem a crença de uma determinada época. Assim, quando orientado a se casar com a filha do devedor de seu pai, Tobias responde ao Anjo Rafael:
Azarias, meu irmão, ouvi dizer que a mesma foi dada a sete maridos e que todos morreram na noite de núpcias; morriam ao entrar onde ela estava. também ouvi dizer que era um demônio que os matava, por isto tenho medo. A ela não faz mal algum, porque a ama, mata porém quem queira aproximar-se dela. Sou Filho único, se eu morrer farei descer ao túmulo a vida de meu pai em consequência da sua tristeza por minha causa (Tob 6. 14, 15 Bíblia de Jerusalém). 
Diante de tal o Anjo Rafael repete a orientação dada nos versos anteriores. Ao seguir as orientações do anjo, o demônio Asmodeu é expulso e preso no Egito. 

É tardia a percepção de que a serpente do Éden fosse uma entidade espiritual que em decorrência de uma queda veio a tornar-se um inimigo de Deus e dos homens. Conforme ressaltado pelo autor da lição de Escola Bíblica Dominical, é tardia, na verdade oriunda da literatura apócrifa e apocalíptica a percepção de um adversário que se opõe a Deus e aos homens. 

O autor de Sabedoria de Salomão afirma que Deus criou o homem para a incorruptibilidade e o fez imagem de sua própria natureza, foi por inveja do diabo que a morte entrou no mundo (Sab 2. 23, 24 Bíblia de Jerusalém). em regra diabo, ou διαβολου (diabolou) é a designação grega para o Hebraico השטן (ha Satan), que significa o Adversário. Mas aqui há que se fazer lembrar as observações de Walter Eichrodt para quem tanto השטן quanto διαβολου somente assumirão o status de maiorais dos demônios na literatura apocalíptica. Antes disto διαβολου e השטן são termos equivalentes para designar uma espécie de promotor celestial. 

Assim, no livro de Jó, Satanás vem entre os benai elohim - בני האלהים - ou filhos de Deus para lembrar ao próprio Deus que a fidelidade de Jó não é nada especial, uma vez que a mesma nunca fora realmente testada (Jó 1. 6- 9; 2. 1 - 6). O mesmo ocorre com Zc 3. 1, 2 e,m que o sumo sacerdote Josué é acusado, mas suas próprias vestes depõem contra ele. Satanás somente o acusa. 

O livro de Enoque apresenta uma versão suy generis para a origem dos demônios. Ali anjos abandonam seu principado e movidos pela concupiscência eles constituem corpos para si e coabitam com as mulheres (En Et 6. 1ss; II Pe 2. 4; Jd v. 6). Desta união espúria surgem surgem os Nephilins que correspondem aos Titãs de acordo com Gn 6. 1- 4ss. 

De acordo com En Et 6 - 16 o chefe dos guardiões são presos e outra parte segue atormentando aos demais homens até o dia em que serão julgados. É em Ap 12 que a João faz uma breve retrospectiva da história que visa narrar a luta entre o bem e o mal. Ali Satanás é identificado com a serpente do Éden e s conceitos acima são reunidos e integrados a esta pessoa. 
E viu-se um grande sinal no céu: uma mulher vestida do sol, tendo a lua debaixo dos seus pés, e uma coroa de doze estrelas sobre a sua cabeça. E estava grávida, e com dores de parto, e gritava com ânsias de dar à luz. E viu-se outro sinal no céu; e eis que era um grande dragão vermelho, que tinha sete cabeças e dez chifres, e sobre as suas cabeças sete diademas. E a sua cauda levou após si a terça parte das estrelas do céu, e lançou-as sobre a terra; e o dragão parou diante da mulher que havia de dar à luz, para que, dando ela à luz, lhe tragasse o filho. E deu à luz um filho homem que há de reger todas as nações com vara de ferro; e o seu filho foi arrebatado para Deus e para o seu trono. E a mulher fugiu para o deserto, onde já tinha lugar preparado por Deus, para que ali fosse alimentada durante mil duzentos e sessenta dias. E houve batalha no céu; Miguel e os seus anjos batalhavam contra o dragão, e batalhavam o dragão e os seus anjos; Mas não prevaleceram, nem mais o seu lugar se achou nos céus. E foi precipitado o grande dragão, a antiga serpente, chamada o Diabo, e Satanás, que engana todo o mundo; ele foi precipitado na terra, e os seus anjos foram lançados com ele. E ouvi uma grande voz no céu, que dizia: Agora é chegada a salvação, e a força, e o reino do nosso Deus, e o poder do seu Cristo; porque já o acusador de nossos irmãos é derrubado, o qual diante do nosso Deus os acusava de dia e de noite. E eles o venceram pelo sangue do Cordeiro e pela palavra do seu testemunho; e não amaram as suas vidas até à morte. Por isso alegrai-vos, ó céus, e vós que neles habitais. Ai dos que habitam na terra e no mar; porque o diabo desceu a vós, e tem grande ira, sabendo que já tem pouco tempo. E, quando o dragão viu que fora lançado na terra, perseguiu a mulher que dera à luz o filho homem. E foram dadas à mulher duas asas de grande águia, para que voasse para o deserto, ao seu lugar, onde é sustentada por um tempo, e tempos, e metade de um tempo, fora da vista da serpente. E a serpente lançou da sua boca, atrás da mulher, água como um rio, para que pela corrente a fizesse arrebatar. E a terra ajudou a mulher; e a terra abriu a sua boca, e tragou o rio que o dragão lançara da sua boca. E o dragão irou-se contra a mulher, e foi fazer guerra ao remanescente da sua semente, os que guardam os mandamentos de Deus, e têm o testemunho de Jesus Cristo (Ap 12. 1- 17 ACF). 

  1. Os intérpretes são unívocos em concordar que a mulher é um símbolo de Israel, que desde o Egito sofre inúmeras perseguições e ameaças de extinção, por conta de ser o povo do qual viria o Messias. 
  2. Para outros autores, esta mesma mulher é a Igreja que agora aguarda o retorno de seu Senhor. 
  3. O sol, aqui é símbolo da glória de Israel na antiga dispensação e da Igreja na Nova. É prometido na literatura apocalíptica que os sábios resplandecerão como luzeiros e estrelas no firmamento.
  4. O dragão é um animal mitológico que corresponde a uma serpente, daí a identificação deste com a mesma, mas que é empregado para fazer intercâmbio com a noção de Leviatã. 
  5. Neste texto ocorre uma associação entre o Dragão e a figura enoquiana de Azazel que assume a condição de príncipe dos demônios. 
  6. Embora Satanás seja descrito como o autor da perseguição aos crentes o grande fato é que ele já está derrotado e sua derrota é previamente enunciada pelo sucesso de Miguel e seus anjos em expulsar esta figura do céu. 
  7. Embora muitos teólogos vejam aqui mais uma descrição da queda, que ocorreu antes da criação, tendo a ver como uma espécie de conciliação entre as antigas ideias judaicas e as novas. Com este trabalho ocorre uma perfeita aglutinação entre a figura do judaísmo posterior em que Satanás é apresentado como promotor e a figura apocalíptica em que é o sedutor e responsável pela sedição dos anjos. 
  8. Há que se considerar aqui a fala de Franklin Ferreira em sua Teologia Sistemática. Para este as ideias correntes a respeito da queda de Lúcifer decorrem, na verdade, da obra o Paraíso perdido de Milton. 
  9. No presente texto a derrocada de Satanás é um esforço de se recuperar face à vitória inevitável dos santos, que vencem por meio do sangue do cordeiro e da palavra do Testemunho. 
  10. Este é um aspecto a ser considerado na concepção de Batalha Espiritual, visto que o Apocalipse é um escrito que visa dar ânimo e consolo às comunidades em perseguição, conforme pode ser visto nas sete cartas às sete Igrejas da Ásia. 
  11. Mesmo derrotado, o dragão se volta agora para a Igreja e induz às nações da terra contra esta. 
  12. Da mesma forma que ocorrera com Israel, a Igreja, a semente da mulher, é levada ao deserto a fim de experimentar livramento das insídias de Satã. 
  13. Mas mesmo no deserto ele movimenta as nações da terra contra a noiva do cordeiro. 
  14. O apocalipse se encarra com a vitória do cordeiro sobre o dragão e sua besta, como sobre as demais potências infernais, indicando a vitória dos cristãos contra as perseguições do império romano. 
  15. Neste aspecto ocorre um alinhamento com as demais formas literárias do Novo Testamento. Paulo por exemplo percebe na morte de Cristo na cruz. uma antecipação da vitória de Cristo sobre as hostes infernais (Cl 2. 14, 15). 
  16. O próprio Jesus entendia que suas curas e expulsões de demônios eram na verdade, antecipações da derrota final de Satanás (Mt 12. 28 - 30). Até os demônios reconhecem que Cristo os condenará (Mc 1. 23 - 28). 
  17. Ainda que venhamos a reconhecer a particularidade de cada gênero literário, é perceptível aqui o alinhamento das ideias da vitória de Cristo sobre os poderes das Trevas. 
  18. A diferença da literatura apocalíptica é que a vitória do cordeiro ganha dimensões cósmicas. 
Espero que este estudo instigue cada vez mais a curiosidade do estudante da Bíblia, e contribua para maior compreensão por parte de professores e alunos a respeito do papel dos demônios na Batalha espiritual. No período bíblico, esta representava a derrocada iminente do mal. Hoje infelizmente tem sido re-significada de forma grosseira. 

Em Cristo, Pastor Marcelo Medeiros, Teólogo, Pedagogo, Especialista em Ciências da Religião. 

Um comentário:

  1. Muito bom o estudo Pastor Marcelo. Da uma outra visão em relação a denonios

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