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sábado, 7 de março de 2015

Não furtarás



O oitavo mandamento traz a proibição tocante ao roubo. A expressão לֹ֣֖א תִּֿגְנֹֽ֔ב  (lo tiganeb),usualmente traduzida por não furtarás, advém do verbo גְנֹֽ֔ב (gãnab) e seus derivados. Na lição da Escola Bíblica Dominical ele é vinculado com a proteção da propriedade privada. Minha perspectiva é de que a preocupação aqui é com o sustento e a manutenção do próximo, uma vez que a Bíblia articula a ordenança em questão com o amor ao próximo (Rm 13. 9), indicando com isto que quem ama não expropria o outro dos meios de sobrevivência.

Contudo não há, na Bíblia, uma única palavra para roubo. É importante que se conheça os demais termos para roubo, ou furto, e com isto saber que não há uma única concepção de roubo. Há outras formas de roubo, tal como as cometidas pelos governantes, ou pelos que são nomeados por eles e se valem do cargo para roubar, para se apropriarem dos bens alheios, principalmente dos pobres, um quadro bem comum aqui no Brasil.

FUNDAMENTO EXEGÉTICO

O verbo גְנֹֽ֔ב (gãnab) e seus derivados é usualmente aplicado ao furto, que é a apropriação do bem alheio, sem o uso da violência executados em oculto, incluindo o arrobamento, geralmente feito á noite (Ex 22. 2) e o rapto (Ex 21. 6). O verbo é usado também de forma figurada, para descrever a ação do vento ao levar algum objeto (Jó 21. 18; 27. 20), a deserção de uma tropa (II Sm 19. 14), e enganar as pessoas, tal como feito por Absalão (II Sm 15. 6).

Para Robinson (2012), os termos Κλέπτης, ou κλέπτω são correspondentes de גְנֹֽ֔ב (gãnab), uma vez que de igual modo são empregados para a ação de furtar algo. Este ato consiste em apoderar-se de algum bem alheio sem o consentimento do dono, mas sem o uso da violência. A palavra cleptomania advém de kleptoo, e consiste na excentricidade de cultivar o hábito de cometer pequenos furtos sem motivação econômica.

Contudo o termo ληστης  aplica-se ao que usa de violência no ato de furtar. É traduzido por salteador, mas também era aplicado aos revolucionários zelotes, que empregavam o roubo e a violência como forma de promover uma revolução que possibilitasse a libertação de Israel do jugo de Roma. É notável que tais métodos eram condenados pelos rabinos.

Jesus avaliou o método destes revolucionários ao afirmar: em verdade, em verdade vos digo: quem não entra pela porta no redil das ovelhas, mas sobe por outro lugar, é ladrão e assaltante; o que entra pela porta é o pastor da ovelhas (Jo 10. 1, 2 Bíblia de Jerusalém), e: todos os que vieram antes de mim, são ladrões e assaltantes; mas as ovelhas não os ouviram (Jo 10. 8 Bíblia de Jerusalém). Aqui Cristo está dizendo claramente que seu ministério difere a ação revolucionária dos zelotas e de tantos outros que o antecederam.

AS EXIGÊNCIAS DA LEI

A lei de Moisés diz claramente: não roubarás (Ex 20. 15 Bíblia de Jerusalém), aparentemente a proibição está limitada ao ato de subtrair, sem violência um bem alheio, mas alguns textos abrem outras perspectivas. Ninguém dentre vós cometerá roubo, nem usará de falsidade ou de mentira para com o seu compatriota [...] não oprimirás o teu próximo, nem o roubarás, o salário do operário não ficará contigo até a manhã seguinte (Lv 19. 11, 13 Bíblia de Jerusalém).

Na mesma proporção em que o furto é associado ao engano e à falsidade, o roubo é agregado às mais variadas formas de opressão. De modo que nos escritos de sabedoria se percebe isto com maior clareza e nitidez. Tanto que os sábios afirmam: O que tem parte com o ladrão odeia a sua própria alma; ouve maldições, e não o denuncia (Pv 29. 24 ACF).

O ímpio arma ciladas no esconderijo, como o leão no seu covil; arma ciladas para roubar o pobre; rouba-o, prendendo-o na sua rede (Sl 10. 9 ACF). Aqui se vê o roubo decorrente da opressão do mais forte sobre o mais fraco. É um quadro que se perpetua por causa dos que se omitem, mas também por causa dos que se associam ao ímpio em sua empreitada e com isto perpetuam este tipo de maldade.

A estes mesmos Deus diz: Não confieis na opressão, nem vos ensoberbeçais na rapina; se as vossas riquezas aumentam, não ponhais nelas o coração (Sl 62. 10 ACF). E isto porque no fim, Deus julga a causa do que é roubado. Não roubes ao pobre, porque é pobre, nem atropeles na porta o aflito; Porque o Senhor defenderá a sua causa em juízo, e aos que os roubam ele lhes tirará a vida (Pv 22. 22, 23 ACF).

Os profetas também não poupam nenhuma forma de roubo, seja resultante da opressão, seja o simples furto. Para Oseias, o SENHOR tem uma contenda com os habitantes da terra; porque na terra não há verdade, nem benignidade, nem conhecimento de Deus. Só permanecem o perjurar, o mentir, o matar, o furtar e o adulterar; fazem violência, um ato sanguinário segue imediatamente a outro (Os 4. 1, 2 ACF).

A relativização da verdade, a perda das afeições naturais, e a ausência de sólidos relacionamentos com Deus, são fatores que fomentam a escalada da violência, contra qual Deus reage convocando um julgamento, uma vez que há uma contenda com os moradores da terra.

Por fim, Isaías decreta um ai para uma classe diferente de ladrões, aqueles que se valem da legalidade para roubar. Ai dos que decretam leis injustas, e dos escrivães que prescrevem opressão. Para desviarem os pobres do seu direito, e para arrebatarem o direito dos aflitos do meu povo; para despojarem as viúvas e roubarem os órfãos! (Is 10. 1, 2 ACF).

O MANDAMENTO E O NOVO TESTAMENTO

Tanto Jesus quanto os apóstolos se referiram ao oitavo mandamento. Um exemplo é o caso do jovem rico que ao perguntar o que poderia fazer para herdar a vida eterna, teve como resposta: Por que você me pergunta sobre o que é bom? Há somente um que é bom. Se você quer entrar na vida, obedeça aos mandamentos. Quais?, perguntou ele. Jesus respondeu: Não matarás, não adulterarás, não furtarás, não darás falso testemunho, honra teu pai e tua mãe e amarás o teu próximo como a ti mesmo. Disse-lhe o jovem: A tudo isso tenho obedecido. O que me falta ainda? (Mt 19. 17 - 19 NVI).

Jesus reafirma aqui tanto a bondade da lei, quando a validade do oitavo mandamento. Sendo que mediante o contexto Cristo associa o que Miquéias chama de benevolência, ou beneficência, na verdade hesed [חֶ֔סֶד], que também pode ser misericórdia, com o bem revelado na vontade de Deus por meio do mandamento. Jesus disse para este jovem que caso este quisesse ser perfeito, deveria vender seus bens e dar aos pobres para então ter um galardão nos céus (Mt 19. 21, 22). 

Não basta deixar de lado o furto, é preciso associar a guarda do mandamento com a prática da justiça social. De sorte que Paulo recomenda: O que furtava não furte mais; antes trabalhe, fazendo algo de útil com as mãos, para que tenha o que repartir com quem estiver em necessidade (Ef 4. 28 NVI). No lugar de promover revoluções à moda Robin Hood, Paulo, o apóstolo recomenda o trabalho como forma de produção e distribuição do que pode gerar sustento próprio e alheio. 

É o amor ao próximo que leva à consumação do oitavo mandamento, como disse, e muito bem Paulo, 
Não devam nada a ninguém, a não ser o amor de uns pelos outros, pois aquele que ama seu próximo tem cumprido a lei. Pois estes mandamentos: "Não adulterarás", "não matarás", "não furtarás", "não cobiçarás", e qualquer outro mandamento, todos se resumem neste preceito: "Ame o seu próximo como a si mesmo". O amor não pratica o mal contra o próximo. Portanto, o amor é o cumprimento da lei (Rm 13. 8 - 10 NVI). 
UMA APLICAÇÃO PARA O CONTEXTO ATUAL

Depois de Cristo e Paulo, creio que uma das mentes mais provocadoras em torno das ideias sustentadas ao longo deste estudo tenha sido o Padre Antônio Vieira.  Desde já quero explicar que minha base teológica é o Calvinismo, não concordo com o autor supra em termos de soteriologia. Mas reconheço que este jesuíta foi um fantástico pregador e que seus sermões são peças literárias de profunda beleza, e que ele sob a luz da graça comum soube captar a verdade divina. O Sermão da Sexagésima e o Sermão do Bom Ladrão são exemplos claros da percepção aguda do literato em questão.

Eu particularmente entrei em contato com o autor em apreço ainda quando me preparava para concursos, e quando cursei o ensino médio conheci o seu famoso Sermão do bom ladrão, cujas ideias pretendo expor brevemente aqui e com maior profundidade em uma postagem posterior. Mas o teor deste sermão pode ser visto no resumo que faço abaixo da referida obra, conforme se segue: 

  1. Há ladrões que são tolerados e os que não o são. 
  2. Dentre os que são tolerados estão os que assumem cargos públicos, mas não por sua capacidade e competência, mas por causa dos conchavos políticos, e pela bajulação. 
  3. Estes começam suas carreiras como ladrões ao ascenderem aos respectivos postos por meios nada legítimos, uma vez que não são capazes para tal. 
  4. A forma ilegítima de ascensão lhes dá respaldo para o exercício ilegal, o que fomenta a corrupção. 
  5. A definição de ladrão, em Vieira, não considera quem por sua miséria se vê forçado a roubar, mas os que se valendo do cargo público roubam. 
  6. Quem nomeia tais para os respectivos cargos acaba por ser cúmplice do roubo que os mesmos praticam. 
  7. À semelhança de Zaqueu que ao ser salvo se dispôs a restituir quatro vezes o que havia defraudado, tais ladrões somente seriam absolvidos se restituíssem o que haviam defraudado. 
Tenho razões de sobra para considerar tal mensagem mais do que atual. Primeiro, é mais fácil execrar o corsário, o pirata, e atualmente o que trabalha com produtos piratas, do que ver com o mesmo desprezo quem é nobre e rouba através de meios mais sutis. As observações dois, três e quatro são mais do que conhecidas de todos os leitores desta nação, e aqui posso me valer das palavras do próprio Vieira, para quem:
O que não entra pela porta, esse é ladrão e roubador (Jo 10. 1). A porta por onde legitimamente se entra se entra ao ofício é só o merecimento, e todo o que não entra pela porta, não só diz Cristo que é ladrão, senão "ladrão e ladrão". E por que é duas vezes ladrão? Uma vez porque furta o ofício, e outra vez porque há de furtar com ele. O que entra pela porta poderá vir a ser ladrão, mas os que não entram por ela já o são. Uns entram pelo parentesco, outros pela amizade, outros pela valia, outros pelo suborno e todos pela negociação. E quem negocia, não há mister outra prova: já se sabe que não vai a perder. Agora será ladrão oculto, mas depois será ladrão descoberto, que esse é, como diz São Jerônimo a diferença de "fur a latro" [o que furta do que rouba] (Vieira, 2009, pp 191
Feitas tais considerações, gostaria de me deter na definição que Vieira faz de ladrão
Suponho finalmente que os ladrões de que falo não são aqueles miseráveis, a quem a pobreza e a vileza de sua fortuna condenou a este gênero de vida, porque a mesma sua miséria, ou escusa ou alivia o seu pecado, como diz Salomão: "não é grande a culpa de alguém que furtar para saciar a sua esfaimada alma" (Pv 6. 30). O ladrão que furta para comer, não vai nem leva ao inferno; os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões de maior calibre, e de mais alta esfera, os quais debaixo do mesmo nome e predicamento distingue muito bem São Basílio Magno: "não são só ladrões, o que cortam bolsas ou espreitam o que vão se banhar, para lhes colher a roupa; os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam povos (Vieira, 2009, p.p. 188). 
Nada pode ser mais atual do estas considerações feitas por Vieira, que além de se espantar com o esquema de roubalheira, se espantou com o silêncio dos pregadores diante de tamanhas maracutaias. Fico a imaginar qual seria a reação do mesmo diante do contrastante Brasil que manda para a cadeia ladrões que cometeram furtos visando matar a fome e até hoje estão presos e os ladrões que se valeram dos cargos comissionados, dos eletivos, e das indicações e nem de longe são tocados pelo braço da justiça. 
quantas vezes se viu Roma ir a enforcar um ladrão por ter furtado a um carneiro, e no mesmo dia ser levado em trinfo um cônsul, ou ditador, por ter roubado uma província. E quantos ladrões teriam enforcado estes mesmos ladrões triunfantes? De um, chamado Seronato, disse com discreta consideração Sidônio Apolinar: "não cessa de punir, e de fazer ao mesmo tempo, furtos" (Vieira, 2009, p.p. 189). 
A leitura destas palavras me traz à memória o momento da cassação do mandato de Fernando Collor de Mello, em que os que lideraram a cassação de seu mandato logo foram associados à casos de corrupção. A austeridade neste caso foi uma capa, para a maldade e rapina existente na vida do indivíduo. 

Ao lado do processo de conscientização, gostaria de propor que a Igreja ore pela nação, a fim de que Deus exponha esta corrupção, mas que levante outros homens corajosos a fim de que julguem estes os responsáveis pelos mensalões, petrolões, e tantos outros que espoliam o povo. No momento atual se rouba ao preservar algumas pessoas que, a despeito do comprovado envolvimento, nas operações lava jato da vida, impõe-se uma condenação fajuta aos peixes pequenos, e pior se passa a conta a ser paga para o povo, quando os verdadeiros ladrões é que deveriam restituir. Oremos para que Deus intervenha com justiça. 

Marcelo Medeiros. 

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